Num
dia qualquer de fevereiro de 2015, uma adolescente inglesa chamada Shamima
Begum, de apenas quinze anos, fugiu de casa junto com duas outras amigas
estudantes do mesmo colégio, na parte leste de Londres. As três rumaram para o
aeroporto de Gatwick – possivelmente, acompanhadas de adultos, já que eram
menores de idade -, de onde tomaram um voo para Istanbul, na Turquia, antes de
cruzarem a fronteira síria até a cidade de Raqqa, autoproclamada capital do
Estado Islâmico. Dez dias depois de chegar a Raqqa, Shamima casou-se com um
holandês convertido ao islamismo, chamado Yago Riedijk, que cerrava fileiras no
exército mundialmente conhecido por transformar em show midiático as
decapitações dos “infiéis”. Com Yago, Shamima teve dois filhos. Um, morreu com
um ano e nove meses; o outro, morreu com oito meses em decorrência de alguma
doença associada à desnutrição e falta de atendimento médico adequado.
Agora
com dezenove anos e descoberta por jornalistas vivendo num campo de refugiados no
nordeste da Síria, onde acaba de dar à luz ao terceiro filho, Shamima quer
“desesperadamente” voltar ao Reino Unido para cria-lo num ambiente tranquilo e
seguro junto à família que permaneceu em Londres. Mas o caminho de volta é
incerto, e talvez nem aconteça. Representantes do governo de Sua Majestade
estão dispostos a impedir seu retorno por considera-la um “risco à segurança
nacional” privando-a, caso necessário, da cidadania britânica, posicionamento
que vem sendo questionando legalmente até mesmo pelo chefe do serviço secreto
inglês – o famoso MI16.
Shamima,
em momento algum, demonstrou remorso em ter-se juntado ao Califado nem abalo
por testemunhar cabeças empilhadas em latas de lixo, mas nega que seja um
perigo caso retorne a Londres:
Eles
(o governo britânico) não têm nenhuma evidência de que eu tenha feito qualquer
coisa perigosa. Quando eu fui para a Síria, eu era apenas uma dona de casa, eu
fiquei em casa nesses quatro anos cuidando do meu marido e dos meus filhos. Eu
nunca fiz nada (de errado). Eu nunca propagandeei (os ideais do Estado
Islâmico). Nunca encorajei qualquer pessoa a vir para a Síria.
Ficaram
famosas as cenas de soldados do Estado Islâmico rasgando seus passaportes
europeus em frente às câmeras de televisão, renunciando simbolicamente à
cidadania de seus países de origem. Aparentemente, não foi o caso de Shamima.
Cidadãos britânicos que não têm dupla nacionalidade – e o Estado Islâmico, por
não ser reconhecido pela comunidade internacional, não tem e nunca teve status de
Estado-Nação - têm o direito de retornar ao Reino Unido, trata-se de legislação
internacional. Ademais, a cidadania não é questão pessoal, de escolha
individual, como um time de futebol, uma religião ou preferência sexual. É uma
identidade jurídica, política, outorgada pelo Estado, e é aqui que o caso de
Shamima chama a atenção.
Ao
que tudo indica, Shamima não rasgou seu passaporte. Ela também nega que tenha
praticado ações terroristas – e, se tivesse, por que não solicitar a
extradição para que o julgamento fosse levado a cabo em território nacional? - apenas
resolveu viver a vida de acordo com as leis impostas pelo regime do
autointitulado Califado. Como as autoridades inglesas se comportariam se
Shamima tivesse permanecido em Londres e levasse adiante sua conversão ao
fundamentalismo religioso? Exercer uma
identidade religiosa que nos agride simbolicamente – porque adotar valores
fundamentalistas não torna um indivíduo automaticamente terrorista – é motivo
suficiente para retirar o status de cidadão?
O
quê define o conceito de cidadania? Quais os critérios que um Estado nacional
pode se utilizar para a retirada da cidadania? Existem critérios “objetivos”?
Quais seriam? Apologia à tortura? Racismo? Quais os riscos de cairmos numa
“caça às bruxas”, nas teorias conspirativas do “inimigo interno”, do
“terrorismo”, nas ideologias nacionalistas xenófobas e racistas, nas Doutrinas
de Segurança Nacional? Existe uma “cidadania correta”, uma “cidadania do bem”?
Não
tenho qualquer simpatia por quem resolveu adotar o fundamentalismo religioso
como estilo de vida. Pessoalmente, acho Shamima uma pobre coitada. Isto,
entretanto, não a transforma numa criminosa, como numa relação inevitável entre causa
e efeito, apenas lhe confere, provisoriamente, o status de boba da corte.
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