No dia 07 de dezembro de 1995, foi ao ar o episódio “The
Sponge” (“A esponja”) de um dos melhores seriados de todos os tempos, “Seinfeld”.
Nele, a única protagonista mulher, Elaine, fica sabendo que seu
anticoncepcional favorito, conhecido como “esponja”, seria retirado do mercado.
Esta notícia devastadora a obriga a percorrer dezenas de quarteirões até
encontrar uma farmácia que dispunha de uma última caixa, com sessenta unidades.
Elaine, então, pede três e, antes que o farmacêutico desse as costas, ela diz em
sequência, para espanto horrorizado do senhorzinho, “dê-me dez... não, vinte...
não, acho que vinte e cinco vai ser suficiente ... dê-me a caixa inteira que eu
dou o fora daqui”.
Bem resolvida com a própria sexualidade, empoderada, segura
de si, independente, senhora do destino, dona do próprio nariz, “master of her
domain”, egoísta mesmo, desafiadora dos papéis sociais tradicionalmente
atribuídos a homens e mulheres, Elaine passa a reavaliar se os parceiros com
quem sai são dignos do uso da “esponja” porque quer evitar a todo custo o
desperdício do precioso bem. O pretendente deveria convencê-la, como vemos no
diálogo a seguir:
- Então você acha que é digno da “esponja”.
- Sim, acho. Sou mais do que digno.
- Explica o seu caso, novamente.
- Bom, nós já saímos várias vezes. Nós temos uma boa
química. Eu sou dono de uma firma de distribuição de eletrônicos que é bastante
rentável. Eu me alimento bem e faço exercícios, e meus exames de sangue são
imaculados. E, se posso ser franco, eu sou bom naquilo...
- E você vai fazer algo a respeito dessas costeletas?
- Sim, eu te falei que vou cortar as costeletas.
- O banheiro do seu apartamento está limpo?
- Sim, a banheira, tudo foi limpo. Está impecável.
- Ok, vamos lá.
Na cena seguinte, os dois na cama, ele tenta beijá-la
e recomeçar as preliminares para uma nova transa. Pergunta se estava tudo bem,
se ela não havia se arrependido. Elaine diz que estava tudo bem, que não havia
arrependimento algum, mas acaba repelindo a investida. Mas, se estava tudo bem,
por que não transar novamente? Então, a racionalidade surge em apoio da vida
sexual da protagonista que, honestamente, diz que gostaria de ajudá-lo, mas,
infelizmente, não pode se dar ao luxo de “desperdiçar duas esponjas” com o
mesmo cara.
Passados praticamente um quarto de século das aventuras
afetivo-sexuais de Elaine, em pleno 2019, eis que um deputado federal do Rio de
Janeiro resolve apresentar um Projeto de Lei proibindo que médicos prescrevam
métodos contraceptivos, classificados por ele como “microabortivos”. O veto
descrito valeria também para o comércio, propaganda, distribuição ou a doação
da chamada “pílula do dia seguinte” e do DIU (Dispositivo Intrauterino),
cabendo às autoridades policiais a apreensão e destruição de todo e qualquer
material que viole a Lei, e mesmo a interdição do estabelecimento industrial ou
comercial que reiteradamente a descumpra. No texto, o deputado afirma que o
objetivo é “fazer valer, na prática, a inviolabilidade do direito à vida
assegurada pela Constituição Federal” e “proteger a vida da mulher”. Dias
depois, diante da avalanche de críticas, o deputado achou por bem retirá-lo da
pauta legislativa, momentaneamente.
Embora facilmente desmentida pela medicina, a tese de
que métodos contraceptivos, como a “pílula do dia seguinte” e o DIU, são “microabortivos”
ganham legitimidade e ares de autoridade científica num contexto marcado pela
submissão da realidade dos fatos à realidade paralela construída em cima da “pós-verdade”,
um mundo onde a verdade ancorada nos fatos é substituída por mentiras – as famosas
“fake news” - para falsificar a própria realidade. No mundo da pós-verdade, as
mentiras que falsificam a realidade passam elas mesmas a produzi-la, como é o
caso do Projeto de Lei abortado – ironia das ironias.
O desserviço prestado por este tipo de iniciativa é
incomensurável. A “pílula do dia seguinte”, por exemplo, é um contraceptivo de
emergência que deve ser utilizado somente em último caso, dentre os quais,
estupros. Ao desprezar as mulheres, negando-lhes o acesso ao medicamento, o
poder público lhes violenta uma segunda vez, obrigando-as a levar adiante uma
gravidez indesejada fruto de um crime. O mesmo desprezo pela saúde física e
emocional de quem teve seu corpo invadido sem permissão está no bojo da “bolsa-estupro”
- formalmente conhecida como Estatuto do Nascituro - que tramita na Comissão de
Defesa dos Direitos da Mulher (!) e prevê o pagamento de pagamento de pensão
alimentícia pelo estuprador, quando conhecido, obrigando que a violentada se
vincule, ainda que virtualmente, ad eternitatem, com o criminoso. É brincadeira
de péssimo gosto vincular a proibição do uso de medicamentos contraceptivos em
caso de estupro à proteção da vida da mulher, como pretende fazer crer o Projeto
de Lei.
Esta deliberada campanha de desinformação está a
serviço de um projeto de poder ancorado numa visão de mundo religiosa,
patriarcal e machista que reverbera em parcelas significativas da sociedade
brasileira. É ela que norteia a atuação de boa parte de políticos eleitos nas
últimas eleições, como a deputada estadual do Ceará que afirmou, orgulhosa, que
seu mandato está nas mãos do marido e entende “a submissão feminina como a
coisa mais linda e formidável dentro do casamento. A Igreja é submissa a Jesus
assim como a mulher é submissa ao marido”. É
a mesma lógica que relega a mulher ao espaço privado, da casa, porque mulher
não serve para a política, que é, por natureza, uma atividade exercida no
espaço público e o espaço público é interditado à fragilidade do sexo feminino.
A tentativa de controle e submissão dos corpos e
mentes femininos também ajudam a entender, por um lado, o estardalhaço e a
saraivada de críticas recebidas pela deputada estadual que exibia, na posse do
mandato, um decote revelador de seus fartos seios - sem dúvida alguma uma sem-vergonhice
típica de depravadas sexuais, diriam os poetas - e, por outro, comentários
jocosos e bem-humorados que atestariam a virilidade do deputado que, portando
um cafonérrimo chapéu de caubói, manteve sua esposa no colo, literalmente,
durante a cerimônia – o cara é comedor, ele que manda no pedaço, diriam também
os poetas.
Fragilidade e virilidade, azul e rosa, submissão e
empoderamento.
Elaine ou Damares?
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