Miguel e as estratégias de sobrevivência


Era um daqueles sábados ensolarados radiantes. Paramos na padaria da esquina para comprar pão de queijo e “cueca virada”, água e cerveja (para mim, deixe-se claro) antes de seguirmos para o parque perto de casa onde o Miguel encontraria um amigo da escola para bater uma bolinha. Abastecidos, passamos pela geladeira dos picolés e eu resolvi, ingenuamente, surpreende-lo com uma novidade:

- Filho, você não vai acreditar no sorvete que acabaram de lançar...
- Qual, papai? O picolé de Snickers?
- Não. Foi o picolé de Kit Kat.
- Ah, papai! Mas esse picolé já lançaram há muito tempo. Quando a gente ainda morava no Rio, eu lembro que uma vez a vovó me levou lá no Copa 74 (aos desavisados: uma lanchonete pertinho de onde morávamos) e eu tomei o picolé de Kit Kat.
- Poxa,  filho. E eu achando que era uma novidade, hein! Tenho que me atualizar dessas novidades, né? E, falando no Copa 74, você sente saudades do Rio de Janeiro?
- Eu sinto.
- E do quê você sente falta, meu filho?
- Eu sinto falta da pracinha (em frente ao nosso prédio carioca) e da nossa casa de lá porque ele é muito bonita.
- E me diz uma coisa, meu filho. Você gostaria de voltar pro Rio de Janeiro?
- Ah, gostaria por causa da pracinha e da nossa casa.
- Mas, você gosta de morar em Curitiba?
- Sim, gosto.
- E do quê você gosta daqui de Curitiba?
- Eu gosto da nossa casa também, que é grande e bonita, e eu gosto dos meus amigos, porque eu tenho um monte de amigos aqui.
- Que legal, filho. Eu também gosto muito de morar aqui em Curitiba, é bem bacana, né. E, me diz uma coisa. Quem é esse monte de amigos de que você falou?

Então, Miguel começou a nomear a penca de amigos que fez na escola, uns dez nomes, entre colegas da própria turma, colegas mais velhos e colegas mais novos. Eu o questionei se todos eram realmente amigos ou se, dentre eles, havia os mais próximos, aqueles com quem tem mais intimidade, com quem compartilha mais afinidades. O rapazola me devolve a pergunta, questionando o porquê de ter de “dar satisfação” de todos com quem se relaciona na escola, esse negócio de inquisição não cola, não. Seguimos nosso caminho quando, de repente, ele se lembra de mais dois nomes, mas faz uma ressalva:

- Também tem o fulano e o sicrano, mas, nesse caso, eu finjo que sou amigo deles porque eu não sou realmente amigo deles.
- E por que você não é amigo deles, cara?
- Porque eles são muito chatos.
- E você saberia ou gostaria de me explicar por que eles são chatos?
- Papai, eu falo palavrão, você sabe né (“bom, eu também falo, meu filho”, pensou o pai...). Então... Eles falam muuuuuito mais do que eu. E, no futebol, eles não respeitam as regras, e eles chutam “bicuda” dentro da pequena área, nem jogador profissional faz isso, e eles batem na perna da gente. Outro dia, o fulano deu uma “bicuda” e o beltrano, que estava agarrando, defendeu e a bolada foi tão forte que está doendo até hoje.
- Caramba, meu filho. Bom, então procura não ficar perto deles no jogo de futebol para você não se arrebentar também, né.
- Ai, papai, eu sabia que você ia falar isso (voz de enfado, cansado dos conselhos hiper preocupados do pai). Uma vez o fulano achou que eu o tinha chamado de “café” (?) e ele ficou logo nervoso, irritado, como se fosse um xingamento. Mas, e se eu o tivesse chamado de “café”, era para ele ficar irritado daquele jeito? E quando a gente está jogando Playstation – os jogadores se comunicam por meio de headphones, viva a tecnologia - eu o ouço xingando o pai e eu ouço o pai xingando ele, tipo “arrombado” e “cú”.

O relato do meu filho, associado ao escasso contato que tive com os pais dessas crianças, fizeram-me lamentar por elas. Crescer num ambiente carregado de agressividade verbal, de comunicação violenta, aos berros, não faz bem ao desenvolvimento psicológico e intelectual de qualquer um de nós, apenas contribui para o crescimento físico de indivíduos tão ou mais agressivos que suas referências familiares e, bastante razoável supormos, intolerantes e autoritários.

Meu filho, por outro lado, e isso me deixou bastante bem impressionado, conseguiu elaborar uma “estratégia de sobrevivência” aos possíveis ataques de fúria dos colegas estressados, estabelecendo com eles uma relação de convivência civilizada. E, pensando bem, quem de nós não teve um algoz na época da escola? Alguém que roubava o nosso lanche? Que zombava dos nossos óculos azuis (“quatro olhos, quatro olhos!”)? Que nos deixava na “de fora” no futebol da hora do recreio porque era o dono da bola e escolhia os titulares e os reservas?

Bem, nos tempos estranhos em que vivemos, de “inimigo interno” e desprezo pela diversidade, nada mais sensato do que exercermos o poder das identidades camaleônicas. Questão de sobrevivência, talvez. Viva o Miguel.



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