A mutilação genital feminina é o corte ou a remoção
deliberada da parte externa da genitália feminina – lábios e clitóris. Há
quatro tipos de mutilação conhecidos: a clitoridectomia, que é a remoção total
ou parcial do clitóris e da pele do entorno; a excisão, que é a remoção total
ou parcial do clitóris e dos pequenos lábios; a infibulação, que é o corte ou
reposicionamento dos grandes e dos pequenos lábios, deixando, em geral, uma
pequena abertura por onde passa o fluido menstrual e a urina, sendo tal
abertura muitas vezes tão apertada que é preciso abri-la para relações sexuais
e o parto; e o quarto tipo, que inclui todos os outros tipos de mutilação, como
perfuração, incisão, raspagem e cauterização do clitóris ou da área
genital.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a
mutilação genital feminina é praticada rotineiramente em cerca de trinta países
do continente africano e em alguns países da Ásia e do Oriente Médio, bem como
em comunidades de imigrantes em países europeus e da Oceania. O procedimento,
“que fere os órgãos genitais femininos sem justificativa médica”, é mais
comumente realizado em meninas desde tenra idade infantil até a adolescência,
por volta dos quinze anos, motivado eminentemente por crenças e valores
associados ao correto comportamento sexual esperado das mulheres, ao rito de
passagem para a vida adulta e à ideia do que seja a “pureza feminina”.
Há, ainda segundo a OMS, 125 milhões de mulheres em
todo o mundo vivendo com as suas consequências físicas e psicológicas, dentre
elas, sangramentos, problemas urinários, infecções, infertilidade, complicações
no parto e risco de morte do recém-nascido. Em muitos países, a mutilação
genital feminina é ilegal. No Reino Unido, onde a prática pode levar à prisão
por até catorze anos, uma mulher ugandense foi condenada – sua sentença ainda
não saiu - por haver mutilado a filha de três anos. Os depoimentos são
horripilantes. Uma ativista queniana, que passou pelo procedimento aos onze
anos de idade, sem qualquer assepsia e praticamente sem analgesia – o único
analgésico era feito a partir de uma planta encravada num buraco no chão, “eles
amarraram minhas pernas como um cabrito e esfregaram a planta em mim” - relata
o sofrimento:
“Eu estava vendada. Depois, eles ataram minhas mãos
para trás, minhas pernas foram abertas e prenderam meus lábios vaginais. (...)
Depois de alguns minutos, comecei a sentir uma dor aguda. Gritei, gritei, mas
ninguém podia me ouvir. Tentei me soltar, mas meu corpo estava preso”
Ao testemunharmos a submissão dessas mulheres, que
caminham à revelia para o cadafalso, violentadas física e emocionalmente,
chegamos à conclusão de que não há relativismo cultural que dê conta da
cláusula pétrea antropológica do respeito à diversidade, que exige a
interpretação do outro com um olhar “familiar”, jogando para escanteio
preconceitos etnocêntricos. Como defensor da autonomia feminina, em todos os
aspectos, inclusive os sexuais, do direito ao prazer, do uso e abuso do próprio
corpo em busca do gozo, não posso, por mais que minha verve relativista bata na
porta, não me posicionar contrariamente à involuntária mutilação genital das
mulheres. Concordo, assim, com Sergio Paulo Rouanet, certeiro na crítica ao
relativismo de tudo e de todos, no brilhante texto “Ética e Antropologia”:
As normas que maltratam a mulher, por exemplo, têm
como todas as outras uma razão de ser para os relativistas. Quando os árabes do
Jordão matam uma mulher que ficou grávida fora do casamento, mesmo quando a
gravidez se deve ao estupro, quando a mulher adúltera é assassinada pelo marido
em certas regiões (a Calábria, digamos, para não ofender nossas
suscetibilidades nacionais) ou quando a mulher indígena, na Venezuela, é
violada periodicamente por parte da tribo, o relativista diria que todas essas
práticas são válidas, porque correspondem aos valores da cultura, e abster-se
delas seria expor os indivíduos à desonra (...) O uso do princípio U poderia
elucidar a questão. Pois essas normas só serão consideradas válidas se todos os
interessados (e interessadas) participarem da argumentação; se nenhum deles
(sem excetuar as mulheres) for coagido; e se nenhum participante (inclusive do
sexo feminino) rejeitar os efeitos da observância dessa norma para os
interesses de cada um (e cada uma). Pessoalmente, acho improvável que o
relativista encontre entre essas mulheres aliadas para a tese de que todas as
soluções normativas encontradas pela cultura são igualmente válidas
Uma provocação, então, me vem à cabeça: o princípio U
de que nos fala Rouanet não deveria ser aplicado também à prática da
circuncisão?
A circuncisão é um procedimento cirúrgico
frequentemente realizado em crianças, geralmente por urologistas ou cirurgiões
pediátricos, no qual é removido o prepúcio, aquela pelezinha que recobre a
glande – a famosa “cabeça” do pênis. No caso de indicação médica, é realizada por
conta de infecção no pênis ou fimose patológica, quer dizer, quando o prepúcio
não se retrai, podendo causar dificuldade de fazer xixi. Dentre os benefícios,
quando feita na infância, são citados a redução das infecções urinárias, a
redução das infecções no pênis, a redução do câncer peniano e do câncer de colo
de útero nas parceiras. Como qualquer outra cirurgia, deve ser feita sob
anestesia.
Apesar de ser considerada um procedimento cirúrgico
levada a cabo por profissionais médicos habilitados, a circuncisão também é
realizada a despeito de não haver qualquer indicação médica para tal. E isto
porque diz respeito a um ritual de passagem importante entre os judeus – e
entre os muçulmanos também -, que simboliza o pacto firmado entre deus e
Abraão, conforme inscrito no Livro de Gênesis:
Esta é a minha aliança, que guardareis entre mim e
vós, e a tua descendência depois de ti: Que todo homem entre vós será
circuncidado.
E circuncidareis a carne do vosso prepúcio; e isto
será por sinal de aliança entre mim e vós.
O filho de oito dias, pois, será circuncidado, todo o
homem nas vossas gerações; o nascido na casa, e o comprado por dinheiro a
qualquer estrangeiro, que não for da tua descendência.
Com efeito será circuncidado o nascido em tua casa, e
o comprado por teu dinheiro; e estará a minha aliança na vossa carne por
aliança perpétua.
E o homem incircunciso, cuja carne do prepúcio não
estiver circuncidada, aquela alma será extirpada do seu povo; quebrou a minha
aliança.
Críticos da circuncisão sem indicação médica afirmam
que o procedimento traz um estresse desnecessário ao recém-nascido, que o
trauma é carregado pelo resto da vida, mesmo que o indivíduo não se dê conta
disso conscientemente e, mais importante na linha de pensamento que tento
seguir aqui, vai de encontro aos direitos humanos porque mutila um ser incapaz
de tomar decisões, independente de motivações científicas de promoção do seu bem-estar
físico e emocional.
Meu filho foi circuncidado ainda na maternidade, por
um urologista que também estava habilitado para realizar o ritual religioso,
que dispensamos. Embora não houvesse indicação médica para a circuncisão, nossa
motivação foi estética – a mãe do meu filho sempre deixou claro que os pênis
circuncidados são esteticamente mais agradáveis e, digamos, tem “personalidade”
- e higiênica – pênis circuncidados são mais limpos e previnem de futuras
complicações – fazendo-se uso do discurso racional, médico, científico para
justificar o procedimento.
Talvez devamos abandonar a tese do relativismo
cultural ou, mais ainda, do absolutismo cultural, tomando partido de um dos
lados, descendo do muro do politicamente correto, deixando de lado o discurso
da imparcialidade e do respeito incondicional e acrítico do “outro”,
reconhecendo que nossas próprias ações são culturalmente motivadas a partir de
crenças e valores específicos, de interpretações do mundo específicas.
Talvez devamos admitir que algumas mutilações são menos
piores do que outras...
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