Em recente entrevista, o ator irlandês Liam Neeson admitiu
já ter saído de casa com um bastão com o propósito deliberado de matar “um
negro” depois que uma pessoa muito próxima foi estuprada, há mais ou menos
quarenta anos. A confissão de culpa – sim, é uma confissão de culpa – foi feita
durante uma entrevista ao jornal inglês “The Independent” em que promovia seu
último trabalho no cinema. Neeson afirmou que essa pessoa próxima lidou com o
estupro “de uma forma extraordinária” (!), e que não conhecia o agressor. O
ator, então, perguntou-lhe qual sua cor. “Negra”, foi a resposta.
Durante uma semana, Neeson saiu às ruas com um bastão
a tiracolo, esperando ansiosamente que um indivíduo de pele negra, um “negro
desgraçado” em suas próprias palavras, o abordasse e o provocasse na saída de
um bar, esperando vingar o sofrimento de sua amiga. Felizmente, nesse período, o
ator não conseguiu extravasar seus instintos homicidas racialmente motivados.
Sim, porque, embora pudesse ter selecionado uma centena de outras características
do agressor, como ele mesmo admite, – “lituano”, “britânico”, “escocês”, “irlandês”,
todas elas, a meu ver, também bastante difíceis de serem apreendidas (como
identificar um escocês sem o kilt e sem ouvi-lo falar com um possível sotaque?)
– a pergunta que ajudaria na identificação do agressor foi especificamente
sobre a cor de sua pele.
Indivíduos não nascem racistas, indivíduos aprendem a
discriminar outros indivíduos pela cor da pele ou por quaisquer outros
atributos que se diferenciam dos atributos que considere “normal”. Liam Neeson
diz que não é racista e eu não tenho porque duvidar dele, porque a atitude
racista – que, na realidade, acabou não se concretizando, ficou apenas na
teoria – ocorreu há quatro décadas, ele se arrependeu do que fez, procurou
inclusive ajuda de um padre. Eu, particularmente, procuraria a ajuda de um psicanalista,
mas, vá lá. O ataque de “sincericídio”, por outro lado, também revela e desvela
a hipocrisia do discurso do politicamente correto porque “todos nós fingimos
ser (politicamente corretos) mas, arranhando a superfície, você descobre que
esse racismo e esse fanatismo estão lá”.
E esse racismo também existe “às avessas”, quer dizer,
por parte de quem sofre historicamente na pele, literalmente, a violência
simbólica e física por ter nascido com a pigmentação da pele mais acentuada do
que os branquelos azedos. Já ouvi, por exemplo, num debate sobre reparações
históricas à população negra, que “vocês”, em referência, obviamente, aos “brancos”,
têm uma dívida a ser paga. A menos que a maldade do senhor de engenho seja
herdada geneticamente, tal linha de pensamento racialista em nada se difere da
que Liam Neeson se utilizou na defesa da honra de sua amiga. No fim das contas,
a cor da pele de um indivíduo não diz muita coisa – se é que diz qualquer coisa
- sobre seu caráter, sobre sua (s) identidade (s) cultural (is), tanto menos
que suas tendências homicidas, como acreditava o criminalista italiano Cesare
Lombroso e seus discípulos tropicais como Nina Rodrigues, autor de “As raças
humanas e a responsabilidade penal no Brasil”.
A solução passa inexoravelmente pela educação, pela
pedagogia da libertação, libertação do etnocentrismo, da ideia de que “nós”
somos melhores ou moralmente superior aos “outros”, o que não significa que
precisamos gostar ou acreditar naquilo que os “outros” gostam ou acreditam. Conviver
com o diferente é necessário numa sociedade que se quer democrática e
culturalmente complexa, onde a própria noção de “nós” é fragmentada porque exercemos
múltiplos papéis sociais. Descentralizar a ideia de “certo” e “errado”,
exercitar o conceito de relativismo cultural tendo por base fundamental os
princípios dos direitos humanos, é saudável. É a ideologia da inclusão.
Já imaginaram quantos Liam Neeson tupiniquins andam à
solta por aí, empoderados pelo discurso racista, homofóbico, misógino e xenófobo
que se espraia na sociedade como a lama tóxica de Brumadinho?
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