Alguma vez fomos um Estado laico?


Na semana passada, um advogado foi impedido de entrar em dois fóruns baianos. Ele estava vestido todo de branco e levava à cabeça o eketé, uma espécie de boina usada pelos adeptos do candomblé para defender os iniciados de perigos externos – a cabeça é a parte mais sagrada do corpo, habitat da energia vital, devendo ser protegida – ou quem está em fase de confirmação na religião. Num dos casos, um policial militar o interpelou, avisando que não poderia participar de uma audiência de conciliação se continuasse portando aquele “chapéu” – bonés e chapéus são proibidos pelo Tribunal de Justiça da Bahia, embora não haja regra específica sobre o uso de objetos sagrados em fóruns. Ao lado do cliente, o advogado explicou que não se tratava de um simples adorno ou adereço, mas de um símbolo de proteção, parte essencial de sua identidade religiosa, que não é incompatível com o bom exercício de sua atividade profissional, tanto quanto o uso do véu muçulmano e do solidéu judaico, eu acrescentaria. Finalmente, foi-lhe permitida a entrada no recinto, como se fosse uma concessão e não um direito.

Poderíamos imaginar, com boa vontade e amor no coração, que os bem-intencionados funcionários dos fóruns baianos estavam simplesmente zelando pelo Estado laico, que garante a liberdade religiosa sem tomar partido de qualquer uma delas ou de nenhuma, conforme estabelecido na Constituição Federal. Mas, será mesmo que foi este o caso? Será que o Estado brasileiro é laico? Será que, em algum momento de sua breve história republicana, o Brasil foi essencialmente um Estado laico?

A secularização na política implicou na separação entre Estado e Igreja. Com a “desregulação estatal da religião”, inscrita na Constituição de 1891, o Estado brasileiro adquire autonomia em relação ao grupo religioso ao qual estava vinculado, a Igreja Católica Romana, instituindo a liberdade religiosa e de culto. No entanto, a relação entre Estado e Igreja Católica e, mais recentemente, as igrejas pentecostais e neopentecostais, sempre foi marcada por tensões e ambiguidades no que se refere aos ganhos materiais e simbólicos dela decorrentes.

Dois brevíssimos exemplos.

Nos tribunais de justiça país afora, dentre eles o Supremo Tribunal Federal e, imagina-se, nos fóruns onde o advogado baiano teve sua entrada barrada, AINDA paira um crucifixo com a figura de Jesus Crucificado, velando e iluminando as decisões dos nobres magistrados. E, agregaria eu, constrangendo cidadãos que não professam quaisquer das religiões cristãs ou, como é o meu caso, qualquer religião.

Digamos também que, depois de uma audiência de conciliação, você resolva matar a sede com uma cervejinha gelada no bar próximo ao fórum. Você tira a carteira do bolso e saca uma nota de dez reais. E lá está, em letras miúdas, a seguinte inscrição: “Deus seja louvado”.

Confundem-se, portanto, Estado e Sociedade, espaço público e espaço privado, impessoalidade e compadrio, casa e rua.

Ainda durante a campanha, o atual Presidente da República afirmou que “não tem essa historinha de Estado laico, não. O Estado é cristão, e a minoria que for contra, que se mude”. Seu lema era “Brasil acima de todos. Deus acima de tudo”. A Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, por sua vez, disse que “o Estado é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã”. Nesta semana, soubemos que a indicada para ocupar a Secretaria Executiva do Ministério da Educação defende uma educação “sob a ótica de Deus”, a partir de uma abordagem que parte “de uma inspiração divina para apresentar um conteúdo formal”. Para ela, Deus foi o maior matemático, autor da História e realizador da Geografia.

Sugiro ao Presidente da República também declarar o Brasil como um país rubro-negro, afinal, a maior parte dos torcedores tupiniquins é apaixonada pelo urubu carioca. Aí eu posso rever minha implicância com esse negócio de crucifixo em tribunal e educação religiosa em escola pública. Tá ok?




Comentários

Raymundo de Lima disse…
Muito bom texto-ensaio. Eu também acho esquizito (de esquizo=divisão quase psicótica) nos ambientes públicos considerados laicos ter cruz, os agentes públicos fazem orações, e agora esta bizarrice ocupando o Mec. Os mesmos que bradam contra a escola sem partido, doutrinam alunos com rezas, orações ou frases da bíblia no quadro negro. Vivemos a era da mediocridade, da hipocrisia, do cinismo, que já formam uma "legião de idiotas" que falam em nome de Jesus ou de Deus. Até o deputado do PSB, Cajuru, no Congresso, fala em nome de Deus. Pode?!!