O hino nacional e o bode na sala


Meu filho aprendeu a tocar violino numa escola pública graças à iniciativa de uma Organização Não-Governamental. As aulas tinham duração de uma hora e aconteciam duas vezes por semana, às segundas e às sextas. Os instrumentos e as partituras eram emprestados aos alunos e os professores eram bastante rigorosos, exigindo treino e dedicação, como deve ser. Havia uma espécie de teste periódico que avaliava a evolução (ou não) dos violinistas, da qual dependia a vaga no curso. No final do ano letivo, os aprendizes se apresentaram numa paróquia abarrotada de gente, repleta de familiares, amigos e vizinhos, que nos deixou bastante orgulhosos e emocionados.

A iniciativa de oferecer aulas de violino a alunos de escolas públicas é um colírio para os olhos porque democratiza o acesso a um estilo musical ainda muito elitista, ajudando também a romper estereótipos – muitas vezes transmutados em símbolos de estigma social - que naturalizam a relação entre classe, raça e cultura. Preto, pobre e, inevitavelmente, sambista. Preto tem o samba no pé; branco tem a sensibilidade da música clássica.

Para facilitar a comunicação entre professores e pais dos alunos, foi criado um grupo no Whatsapp. E, esporadicamente, a realidade implacável e fétida de violência nos lembrava que ações isoladas, desconectadas de políticas públicas de longo prazo, por mais benévolas que fossem, não conseguiriam mudar desigualdades estruturais. Certa vez, um pai mandou uma mensagem em que lamentava a ausência do filho na aula daquele dia por conta de “problemas na comunidade”, eufemismo para troca de tiros entre traficantes e policiais militares ou o toque de recolher imposto aos moradores da favela. Aquilo era um soco no estômago.  

Na escola, o papel higiênico ficava na secretaria para maior controle do uso. Por mais de uma vez doamos resmas de papel para impressão de atividades curriculares, doação voluntária porque os funcionários não tinham permissão para pedir ajuda aos pais que tivessem condição de ajudar. Nas reuniões periódicas com os professores, assuntos relacionados especificamente às disciplinas ficavam relegados a segundo plano, muitas mães perguntando sobre o atraso na entrega dos cartões que isentam os alunos da passagem em ônibus e metrô, sem o qual a frequência à escola fica inviável. Os funcionários, com a exceção de um ou outro de coração mais duro, solícitos e dedicados, demonstrando amor incondicional à atividade docente a despeito das dificuldades de infraestrutura crônicas que perpassam a história da educação pública no Brasil. Apesar dos pesares, a escola foi muito bem na última avaliação do IDEB – Índice de Desenvolvimento da Educação Básica instituído pelo Ministério da Educação em 2007.

Então, o ministro da educação manda uma carta - assinada com o slogan de campanha do governo eleito, “Pátria acima de todos. Deus acima de tudo” - para todas as escolas do país “sugerindo” que as crianças sejam filmadas cantando o hino nacional. A princípio, não há motivo para criticar a “sugestão”, afinal de contas, o hino é um símbolo da identidade nacional. Cantá-lo é um ritual, uma prática simbólica que atualiza e reforça o sentimento de pertencimento dos indivíduos a esta “comunidade imaginada”, construindo uma ponte entre o passado, o presente e o futuro, um meio de fortalecer os laços sociais, a coesão social, através do compartilhar de uma memória comum. Mas, como também sabemos todos, de boas intenções o inferno está cheio...

Para além das questões legais, como a necessidade de autorização dos responsáveis para a divulgação da imagem de menores de idade, a proibição do uso de propaganda de campanha em peças institucionais e, claro, a agressão ao caráter laico do Estado, é flagrante o descolamento da alta burocracia estatal e a vida cotidiana da maior parte da população, que procurei ilustrar acima. Ao “sugerir” que os alunos cantem o hino, o ministro procura legitimar o governo que representa instigando um sentimento nacionalista – aliando fanatismo religioso, desprezo pela diversidade lato sensu e autoritarismo militarista - que mascara a infraestrutura deficiente das escolas públicas Brasil afora, as péssimas condições de trabalho para professores e demais funcionários e os péssimos salários. Nota não tão pitoresca: recentemente, o prefeito do Rio de Janeiro recomendou a diminuição da carga horária de português e matemática nas escolas do município. Diante da grita geral, voltou atrás e sugeriu mais “estudos” antes de tomar a decisão final. Meritocracia é coisa para poucos.

Vocês devem conhecer a parábola do “bode na sala” ou, pelo menos, uma de suas várias versões. Uma delas diz que, num vilarejo, viviam um homem e uma mulher, os três filhos e a sogra. O homem sentia-se muito infeliz, reclamava de tudo e de todos. Implicava com os filhos, não aguentava mais a sogra, a mulher não lhe preparava a comida (quando havia comida na despensa). Certo dia, cansado de sofrer, buscou a ajuda do sábio do vilarejo, que lhe disse “meu filho, procure um bode e coloque-o na sala”. O homem ficou surpreso, mas resolveu seguir o conselho. Tempos depois, o homem voltou a procurar o sábio, ainda mais infeliz, dizendo que sua vida havia piorado, que a casa estava imunda e com um cheiro nauseabundo. Então, decidiu retirar o bode da sala e, imediatamente, o ambiente tornou-se mais agradável e as relações pessoais estavam melhores do que nunca.

Cantar o hino, para muitas crianças, exalta uma Pátria que não lhes pertence.

O quiproquó do hino nacional é o nosso bode na sala.



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