A professora pediu que os alunos elaborassem um
pequeno texto sobre o Tratado de Tordesilhas. Para ajuda-los na tarefa, sugeriu
dois vídeos disponíveis no Youtube. Um deles, no entanto, não tratava
diretamente do tema da pesquisa, mas das capitanias hereditárias. De forma
bastante didática, com linguagem clara, simples e direta, atraente à estudantada,
explicava como a divisão de terras daquele imenso território entre poucos
privilegiados e as estratégias de ocupação através do plantio da cana-de-açúcar
- “na época, o que dava grana era açúcar, dava mais grana do que droga, era
mais caro do que Nutella, era o produto do momento” - estiveram na gênese de
uma sociedade marcada por profunda desigualdade social.
No grupo de Whatsapp dos pais da escola, os
comentários se concentraram, basicamente, na dificuldade de realizar a tarefa
porque o vídeo sugerido não condizia com o tema da pesquisa. Problemas
técnicos, digamos, não do conteúdo divulgado. Um pouco de boa vontade desses
pais, auxiliando os filhos na busca por outros vídeos que tratassem do tema
solicitado, como nós fizemos, resolveria o problema, vida que segue. De
qualquer forma, o conteúdo era, a nosso ver, muito bom, condizente com a
interpretação que damos aos fatos históricos relacionados à colonização
portuguesa, baseada antes na exploração e na escravidão do que no povoamento,
que o digam os indígenas, seus habitantes originários, alheios à “comunidade
imaginada” pelo rei português. O professor virtual nos ensina, muito
apropriadamente: “O Brasil é o nome que a gente dá para esse território imenso
a partir de 1500, porque antes de 1500 essa terra era dos índios, e eles nunca
tinham ouvido falar em Brasil”.
Eis que somos surpreendidos – quer dizer, na atual
conjuntura distópica, nada nos deve surpreender mais – pela informação de que
alguns pais reclamaram à coordenação pedagógica da escola do que chamaram de
“doutrinação socialista”. Tudo porque o vídeo – e eu tenho cada vez mais
certeza de que há males que vêm para o bem – planta no espectador a semente da
inquietude sociológica, da reflexão, da crítica (no sentido de pensamento
crítico) aos fatos da vida, afinal de contas, por que a gente tem que pagar tão
caro para ter uma casa num país gigante igual esse que a gente tem? Ora, “porque
desde 1534 dividiram o país, que tem o tamanho de um continente, para menos de
vinte pessoas”. E se você resolve lutar pela terra, é logo tachado de vândalo,
criminoso e vagabundo “porque o certo é você aceitar um país desse tamanho
sendo dividido para alguns latifundiários”. O Brasil, conclui o “doutrinador
socialista”, nunca passou por uma reforma agrária, a questão social é tratada
como caso de polícia, não de política.
Diante desse clima de caça às bruxas que revive os
tempos sombrios do macartismo, de revisionismo histórico e pós-verdade, de desonestidade
intelectual, culto à ignorância e cinismo - “nunca houve ditadura no Brasil”,
“nazismo é de esquerda”, “a terra é plana” - é compreensível que os docentes se
autocensurem e sucumbam à pressão institucional de quem lhes paga o salário,
apesar de sabermos que não há ensino neutro, que toda pedagogia é orientada por
alguma base ideológica. Quando a professora diz, por exemplo, que houve escravidão
no Brasil, ela está sendo, pura e simplesmente, ideológica.
A propósito: o que seria uma “doutrinação capitalista”?
Comentários