O diálogo é real,
ocorreu faz uns dias.
- Papai, eu acho
que a escola tem preconceito contra professores.
- Como assim, meu
filho?
- É que eu só
tenho professoras. O único professor que eu tenho é o de Educação Física.
- É o seguinte,
piá. Por muitíssimos anos, décadas a fio, a arte de educar esteve associada ao
sexo feminino e à maternidade. O papel esperado da professora, além daquele
regulamentar, de ensinar as matérias curriculares, assemelhava-se ao esperado
de uma mãe que cuida e protege seus filhos. Talvez, na impossibilidade de
chama-las de “mãe”, as crianças as chamavam – e muitas ainda chamam, incentivadas
pelos próprios pais – de “tias”. Acho que isso acontecia, sobretudo, nos
primeiros anos escolares. A mesma lógica do cuidado e da proteção serve para o
caso das enfermeiras, carreiras, até época recente, eminentemente femininas.
Por outro lado, profissões que exigem força física, como a Educação Física,
estavam associadas aos homens.
- Ah, entendi.
- Mas as coisas
mudaram. Hoje, há muitos homens que dão aulas em escolas, a minha melhor
lembrança da escola é do meu professor de História, ele foi uma das minhas
inspirações para que eu escolhesse as Ciências Sociais. Da mesma forma, hoje há
muitas professoras de Educação Física e muitos homens enfermeiros. Não estou
dizendo que você esteja errado na sua percepção de que a escola tenha
preconceito contra professores, apenas que há uma explicação histórica para
essa “defasagem” de gênero. Tenho uma sugestão: pergunte ao coordenador o
porquê de não haver mais homens dando aula lá, acho que ele vai gostar do seu
questionamento.
É curioso que a
estranheza de meu filho tenha aflorado num hipotético caso de preconceito
contra homens, numa sociedade marcadamente patriarcal, machista e autoritária,
onde mulheres ganham menos que homens nas mesmas posições hierárquicas e o
feminicídio é quase um direito adquirido, um ethos nacional. Mas eu desconfio
do por que dessa interpretação, e ela não tem nada a ver com um sentimento
revanchista e rancoroso do macho ferido em seu orgulho masculino.
Não existe
constatação objetiva, isenta, imparcial, desinteressada, asséptica da
realidade. Nossos olhos só conseguem enxergar a realidade sensorial através dos
óculos da cultura, que nada mais é do que a visão de mundo - a ideologia,
diriam alguns, muito apropriadamente – que, informada por crenças e valores,
nos ajuda a interpretar, explicar a experiência mundana. A “sujeira” da cultura
é como uma bússola que nos orienta nesse oceano de “províncias de significado”
praticamente infinitas. O ser humano produz e, ao mesmo tempo, é produto da
cultura.
Eis, portanto,
uma possível explicação para o “thauma”, para o espanto e desconforto do Miguel
com a pouca presença de professores em sua escola. Eu e sua mãe acreditamos, e
lhe transmitimos esta crença, de que homens e mulheres podem desempenhar os
mesmos papéis sociais, contanto que tenham as mesmas oportunidades, e que ser
homem e ser mulher é uma construção permanente irredutível à constituição
fisiológica do indivíduo. Simplificando: nem sempre meninos vestirão azul e
meninas, rosa.
O mesmo vale para
a construção da afetividade, que não se resume à sexualidade. No restaurante,
ele comenta com ar blasé:
- Papai, olha lá
duas esposas.
- Como é, meu
filho?
- Lésbicas,
papai... (expressão de enfado, diante da estupidez paterna)
- Mas como você
sabe que é um casal de lésbicas? Podem ser irmãs.
- Elas entraram
de mãos dadas, com uma menina na frente.
- Então, tá.
Os mal-humorados
diriam que meu filho é homofóbico por chamar a atenção para um fato que deveria
passar despercebido porque natural, normal. Nada mais equivocado. Embora relações
homoafetivas sejam normais – sim, é nisso que cremos também -, a sociedade
brasileira não o é, é intolerante e violenta, portanto, não é comum, ainda,
vermos casais gays de mãos dadas em QUALQUER LUGAR. Por outro lado, a
constatação objetiva das mãos dadas associada ao ar blasé, retirando do
comportamento um sentido estigmatizante, me permite afirmar que a transmissão
da ideia de que relacionamentos afetivos são muito mais ricos do que o clássico
“homem e mulher” tem surtido efeito no “mano”. Nada de criminalizar afetos.
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