A gestão da sobrevivência


Desembarquei no aeroporto Santos Dumont no início da tarde da última sexta-feira. Segui para o local onde os motoristas de aplicativos podem parar. Em poucos minutos, embarcava rumo à casa de meus pais, em Copacabana. Ele logo me pergunta se sou carioca, eu respondo que sim, que estava de visita porque atualmente moro em Curitiba. Comenta-se, como não poderia deixar de ser nessas “conversas de elevador”, sobre o calor que fazia àquela hora – uns trinta graus e bastaste úmido – e a previsão desalentadora de virada de tempo e chuva para todo o final de semana o que, infelizmente, se confirmou.

No trajeto de aproximadamente nove quilômetros até Copacabana, que levou menos de vinte minutos, recebi uma verdadeira aula do que alguns pesquisadores têm chamado de “gestão da sobrevivência”.

O simpático e comunicativo motorista tem vinte e dois anos, é solteiro. Havia chegado ao Rio de Janeiro, vindo de uma pequena cidade no interior do Espírito Santo, para trabalhar nas obras de expansão da malha metroviária carioca com vistas às Olimpíadas de 2016. Gostou tanto da cidade que, mesmo após ficar desempregado com o fim das obras, decidiu permanecer e ali fazer a vida. Não conseguiu emprego formal desde então, fez um curso de eletricista, está aprendendo inglês. Enquanto não realiza o sonho de sair do país, trabalha de taxista.

- Antes, o aplicativo descontava um percentual do valor da corrida e nós ficávamos com a maior parte. Agora, nós recebemos por quilômetro rodado. Então, nessa corrida de agora, para Copacabana, que vai dar mais ou menos vinte reais, eu recebo praticamente a metade disso, porque o quilômetro vale cerca de R$1,20. Às vezes, menos da metade.

Eu pondero que isso pode prejudicar bastante os passageiros desatentos ou que não conhecem muito bem o trajeto até o destino, já que o motorista, se desonesto, pode ficar “zanzando” pela cidade de modo a aumentar a quilometragem e, consequentemente, o valor da corrida.

- O aplicativo considera, sempre, o maior trajeto. Se eu vou da Barra da Tijuca (zona oeste) até o aeroporto do Galeão pela zona sul, em vez da Linha Amarela (via expressa), que é o maior trajeto, eu sou descontado do pedágio que existe na Linha Amarela ainda que tenha escolhido outro caminho, mais rápido inclusive, respeitando o passageiro.

O carro que dirige é próprio, por sorte. Pergunto-lhe se dá pra tirar um bom dinheiro com este trabalho. Ele me responde que consegue ganhar até dois mil reais por semana. Demonstro espanto, porque não está nada mal ganhar dois mil reais por semana. Então, veio o porém. Deste valor bruto, é necessário descontar, no mínimo, os gastos com combustível e alimentação diária, reduzindo pela metade, o rendimento semanal.

Na atual conjuntura, um salário de R$ 4.000,00 – se levarmos a sério os cálculos do meu motorista - está longe de ser ruim, não é mesmo? Mas, será que esta é a regra? E, se for a regra, como é o dia-a-dia desses trabalhadores para alcança-la?

- Na verdade, se você pensar bem, eu tenho dois trabalhos. Começo a rodar às seis horas da manhã e só paro às dez horas da noite. Todos os dias, de domingo a domingo. Então, eu trabalho de seis da manhã até à uma hora da tarde, paro comer qualquer coisa e, depois, sigo até às dez da noite. E tem que ter sorte, também. Sorte de pegar corridas para longe, tipo do Santos Dumont para a Barra da Tijuca ou até mesmo aqui pra Copacabana. Mas tem muito motorista rodando agora, a concorrência é muito grande, então tudo é questão de sorte. Tem muita gente desempregada que está tentando a vida rodando de motorista de aplicativo. Existe uma fila virtual lá no aeroporto, às vezes você é o número duzentos.

Ele encarna fielmente a “uberização” das relações de trabalho, consolidando “a passagem do estatuto de trabalhador para o de um nanoempresário-de-si permanentemente disponível ao trabalho”, segundo a professora Ludmila Costek Abílio, da PUC-Campinas. Este processo de terceirização e precarização do trabalho retira garantias mínimas ao mesmo tempo em que mantém a subordinação do trabalhador. A empresa – no caso, a empresa-aplicativo –, simples mediadora entre consumidores e trabalhadores-microempreendedores, se torna responsável apenas por prover a infraestrutura virtual para que os “parceiros”, a quem são transferidos todos os riscos e custos, executem o trabalho. O trabalhador é autônomo, a empresa não é sua contratante, ele não é um empregado, mas um cadastrado que trabalha de acordo com suas próprias determinações.

Por outro lado, a não-empregadora estabelece uma série de regras e critérios de avaliação e métodos de vigilância sobre o trabalhador, ao mesmo tempo em que se exime de responsabilidades que configurem vínculo empregatício. A avaliação da qualidade do serviço é delegada ao consumidor, a uma “multidão vigilante” que funciona como um gerente coletivo, que dá notas a cada vez que o serviço é prestado. Outro dia, assisti um documentário sobre esse processo de uberização das relações de trabalho e o depoimento de um motorista me chamou a atenção. Ele contava que, certo dia, depois de deixar um passageiro na rodoviária da cidade, recebeu uma mensagem da empresa-aplicativo informando que sua pontuação estava abaixo do mínimo aceito e, de acordo com as diretrizes adotadas, seu cadastro estava sendo cancelado a partir daquele momento. O motorista não sabia o que fazer, na verdade, nada havia a fazer, porque não há um setor de Recursos Humanos a quem se possa recorrer numa situação dessas.

O “meu” motorista trabalha dezesseis horas por dia. Sua jornada de trabalho é extenuante porque a concorrência é enorme, porque esse trabalho sem estatuto profissional deixou de ser um “bico”. O fato é, lembra a professora Ludmila, “que a passagem do relógio de ponto para o relógio de pulso mostrou-se extremamente eficaz na intensificação do trabalho e na extensão do tempo de trabalho” e a jornada de oito horas “parece uma lembrança distante para trabalhadores das mais diversas qualificações e remunerações”. Sem direito, obviamente, a férias, 13º salário, INSS, FGTS, aposentadoria.

Cheguei ao destino. Desejei boa sorte ao jovem e simpático capixaba. Ele vai precisar. Todos nós... 



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