O diabo tem razão


O aviso angustiado veio no grupo de Whatsapp dos pais da escola. Pedia o máximo de cuidado com o que nossos filhos veem e ouvem porque outro dia, no shopping, a zelosa mamãe testemunhou alguns adolescentes assistindo o vídeo de um cantor que falava de suicídio e demônio. Para comprovar seu compreensível desespero, num gesto de empatia e solidariedade comunal, compartilhou com todos os outros papais e mamães o famigerado vídeo, ilustrativo da maldade a que nossos filhos estão expostos por gente imoral, indecente, depravada, imunda, de coração de pedra.

Resolvi, meio a contragosto, porque preparava o lanche da tarde e não queria perder o apetite, assisti-lo. A letra, cantada na primeira pessoa, personificada numa criança, fala de seu amigo imaginário chamado Bob, “filho de um anjinho que foi caído, inverte o crucifixo, queima a bíblia e outros santos”, que “já achou sua morada aqui” e “não quer sair de mim”. A criança diz à mãe que precisa apresenta-lo, já que Bob “vem cuidar de mim enquanto tu dorme”. Aliás, o amigo imaginário diz que “teu (da mãe) tic-tac tem um efeito extraforte, que tu só levanta no amanhã por pura sorte”. 

A criança também precisa apresentar Bob ao pai. Bob diz que a criança tem “outras mamães” que o pai “esconde até a morte” e que seu (do pai) nariz “fica branquinho usando algo que não pode”. O amigo imaginário protege a criança pegando “a espingarda do papai que ele guarda atrás do armário”, mirando para a porta do quarto e dizendo que ninguém vai entrar ali. O pai vai para o inferno e, de lá, ele não foge, afinal de contas, “meus irmãos eram fetos, que tu ordenou que aborte”. “Não pode não”, termina a letra.

Não é preciso ser intelectualmente superdotado para compreender que a letra da música é sarcástica e irônica, e que não é possível apreende-la literalmente, senão metaforicamente. Revela a hipocrisia das famílias “de bem” que apregoam determinados valores, embora, na prática, pratiquem coisa completamente distinta. Fala do vício em drogas lícitas – o “tic-tac” da mãe – e ilícitas – a cocaína do nariz “branquinho” do pai -, da infidelidade conjugal, do aborto, da posse de armas de fogo e, a meu ver, também de pedofilia, quando Bob fala que ninguém vai entrar no quarto enquanto ele estiver na porta com a espingarda. Bem e mal, portanto, são conceitos relativos, dependem da perspectiva. O demônio incorporado no amigo imaginário, um “anjinho caído”, alerta a criança para os perigos da vida, reafirmando, inclusive, que certos comportamentos dos pais são errados, “não pode, não pode, não pode”. Quem é o mal? Quem é o bem?

O vídeo não é apologia de nada. Os temas tratados ali devem, sim, caso venham à tona, ser discutidos numa linguagem apropriada à faixa etária – estamos falando, no caso da mamãe que alertou aos outros pais da escola, de crianças de dez anos. Reduzir a letra da música às palavras soltas, à literalidade fora do contexto, é ingênuo, infantil, pueril. Adultos que pensam e se comportam assim, incapazes de interpretar textos, deveriam retornar aos bancos escolares, ao lado dos próprios filhos.

Alguém, no grupo virtual, exclamou “Jesus proteja nossos filhos!”. Bem, se depender dele, Bob terá muito trabalho.



Comentários

Anônimo disse…
Alguém escreveu sobre a dificuldade de as pessoas hoje saberem ler textos com ironia, metáforas e parábolas. Se Jesus escrevia usando parábolas há mais de 2mil anos, será que regredimos na interpretação?
Em sala de aula, curso de Pedagogia, vejo trabalhando com alunos sobre esse tipo de dificuldade. Muito bom texto. abç. do Raymundo de Lima(REA)
Sandra Pinto disse…
Está muito difícil lidar com o preconceito enraizado. Muitos tem dificuldade de interpretar devido à falta de estudo, mas há também os que são conduzidos por gente inescrupulosa que usa o medo como arma de dominação. Seu texto é uma luz nesse momento trevoso.