Silêncio na favela!


Frequentei o estádio do Maracanã desde pequeno. Lembro-me, se a memória não me trai, que o primeiro jogo dessa longa trajetória futebolística foi uma derrota do Flamengo para o Atlético Mineiro, placar mínimo. Por décadas fui um Arquibaldo, personagem criado por Nelson Rodrigues para se referir aos torcedores que se sentavam nas arquibancadas de concreto do velho Maraca, fazendo dupla com os Geraldinos, aqueles que assistiam os jogos em pé na Geral, espaço democrático onde torcedores dos dois times misturavam-se sem maiores dramas.

O ingresso da Geral era mais barato do que o da Arquibancada, embora este também não fosse escorchante, proibitivo aos bolsos mais comedidos. Era uma tradição familiar meu pai levar-me, aos sábados à tarde, a jogos do campeonato carioca contra equipes de menor investimento, como Bangu e América, cujas épocas áureas haviam se perdido num passado longínquo das décadas de sessenta e setenta. O público, nesses jogos, variava entre cinco e dez mil pessoas. Na volta, passávamos na Itajaí e comprávamos uma pizza e uma garrafa de Coca-Cola, que dava para os quatro da família.  O futebol era um entretenimento popular, acessível.

A reforma do Maracanã, com vistas à Copa do Mundo de 2014, acabou com a Geral e “civilizou” a Arquibancada, que ganhou cadeiras individuais. A justificativa sempre foi baseada em critérios internacionais de segurança, tomando-se como parâmetro os estádios de futebol europeus. A padronização ou pasteurização também ocorreu na própria estética dos estádios, todos muito parecidos internamente, e muitos deles agora chamados, também à moda européia, de “Arena”. Perdeu-se a tradição dos apelidos, quem aqui se lembra de chamar o Maracanã de “O Maior do Mundo”? A transformação mais profunda ocorreu, entretanto, nos valores cobrados pelo ingresso, hoje tão ou mais caro do que espetáculos no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, outrora espaço elitizado.

Dia desses, enquanto meu filho jogava bola com os colegas num dos parques da cidade, eu socializava com os outros pais trajando o Manto Sagrado. O Flamengo, líder do campeonato, jogava, naquele momento, com a boa equipe do Santos. Alguém lembrou que, naquele final de semana, o Atlético Paranaense jogaria contra o Avaí, em Curitiba, na Arena (olha ela aí!) da Baixada, e que seria bacana levar os rapazinhos. O único senão era o preço do ingresso, módicos R$ 150,00, embora o apelo do confronto fosse mínimo: o Furacão curitibano lutando por melhores posições no meio da tabela e a equipe catarinense tentando fugir da última colocação. Então, alguém comentou:

- Mas esse valor acaba selecionando quem frequenta...

Surpreendido, de olhos arregalados, coração palpitando, porque entendo o futebol como o esporte popular por excelência e eu torço por um time cujas torcidas adversárias gostam de menosprezar gritando nas arquibancadas “ela, ela, ela, silêncio na favela”, no intuito de associar a favela à pobreza, violência, imoralidade e bandidagem, perguntei:

- Mas, selecionar como? E o quê, exatamente?

O interlocutor não esperava a réplica, e teve muita dificuldade em dissertar a respeito de sua tese darwinista. Balbuciou alguma coisa relacionada à violência nos estádios, e eu tive que lembrá-lo que boa parte da violência dentro e fora dos estádios de futebol é oriunda de torcidas organizadas comumente patrocinadas pelas próprias diretorias dos clubes, e que o futebol é um esporte popular, é um patrimônio cultural nacional e que a elitização através da cobrança de ingressos caríssimos é uma vergonha.

Concluo esta breve digressão com a ideia de que a “seleção social”, vinda geralmente de uma classe média que costuma “comer mortadela e arrotar caviar”, nada mais faz do que legitimar uma visão de mundo que equivale cidadania a consumo, o indivíduo existe na medida em que pode pagar sua existência, ele é aquilo que compra. Não existem direitos básicos, embora garantidos na Constituição Federal, o direito ao entretenimento e ao esporte, por exemplo. 

A tese da seleção, preconizada pelo meu interlocutor, advoga, ainda que inconscientemente, nada mais, nada menos, do que a assepsia social.

Ai, que saudade do velho Maraca!




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