Na consulta de rotina com a oftalmologista, meu moleque vai
falando as letras que aparecem lá na frente. Visão acuradíssima, tudo nos
conformes. Percebo, então, que a vogal "e" é dita com o som de
"ê", e não como mandam as boas práticas cariocas, "é". Pergunto
ao pequeno grande homem o porquê da infâmia, e ele responde que ela, a
oftalmologista, ia “achar estranho". Penso, então, com os meus botões, que
precisamos introduzir lá em casa ação afirmativa em defesa da identidade
carioca porque, embora tenha Curitiba no lado esquerdo do peito, perder a
malemolência linguística é demais pra mim.
Meu filho mora em Curitiba há menos de dois anos, mas o nariz
já não fica "entupido", fica "trancado"; não toma
"sacolé", mas "geladinho"; nada de "mermão", mas
"véio"; o chiado do "bixcoito" trocado pelo "r"
arrastado mais parecido com o interior de São Paulo; nada de tirar a camisa em
dia sol, mas a vergonha do corpo que, parece, acomete os nativos. Quando está
jogando videogame com os colegas e solta uma dessas expressões, a mãe, lá da
sala, entra em desespero e, ensaiando um escândalo, grita
"Migueeeeel!", e o pai, preparando o lanche da noite na cozinha,
sorri. Enfim, menos um carioca no mundo, resigno-me.
Outro dia, vínhamos conversando despreocupadamente na volta
da escola, quando decido trazer pra resenha o tema do sotaque já que, minutos
antes, ele havia soltado mais um desses termos exógenos às boas práticas
malandras das terras de São Sebastião. Então, fiquei encantando com sua
perspicácia e sentido de humanidade, tal qual reza a boa cartilha antropológica.
- Eu mudo a forma de falar de acordo com as pessoas. Eu falo
assim (referindo-se ao “curitibanês”) quando estou aqui, mas, lá no Rio, eu
falo diferente. Eu sei falar como carioca também.
Fantástico. Ele muda o sotaque de acordo com o público, de
acordo com o contexto. É um exímio negociador de identidades, adaptando-se camaleonicamente
e sobrevivendo aos distintos ambientes. Plasticidade identitária, adaptação
cultural às incontáveis ecologias humanas por onde circulará ao longo da vida,
redefinição de fronteiras simbólicas, pontes no lugar de muros.
Mas que o meu ouvido dói quando ouço certas palavras saindo daquela
boquinha, ah, isso não posso negar...
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