As férias escolares chegaram. Depois de
um ano de muita ralação, mandando bem em todas as matérias e garantindo o
passaporte para o sexto ano, é hora de curtir o dolce far niente, ficar de
pernas pro ar, escangalhar os olhos de tanto ver televisão, acordar tarde,
combinar de encontrar os amigos todos os dias da semana, comer mais bobagem do
que o normal. Aproveitando o recesso de final de ano, tirei duas semanas para
ficar com o meu filho e fazer-lhe todas as vontades, inclusive as gastronômicas,
preparando um de seus pratos favoritos, o meu inesquecível “carne com batatas
rústicas”.
Somos uma família da rua. Fez um mísero mormaço,
estamos passeando por aí pra aproveitar a vitamina D, nos parques, nas praças,
nos botecos, nos cafés, nas feiras livres, desbravando o centro histórico e sua
arquitetura. Estar ao ar livre e compartilhá-lo com os outros moradores da
cidade é, para nós, estar vivo, é viver a diversidade de sons, cores, gostos,
cheiros, pessoas.
Desde muito cedo, Miguel tem, no espaço
público, o mais democrático de todos, especialmente nas praças e parques, uma
referência de identidade muito forte. É nesses lugares de memória que ele vem
construindo sua persona, o skatista, o ciclista, o jogador de futebol
perna-de-pau, o trocador de figurinhas, o jogador de botão, o jogador de
pingue-pongue, o masoquista que usa a lupa para “fritar” bichinhos. Tinha sete
anos de idade quando foi à padaria da esquina pela primeira vez, comprar seu
predileto pão doce, observado de longe – sem sabê-lo – pela mãe que filmava
tudo com o celular.
Dia desses, Miguel convidou dois colegas
para brincar numa quadra pública a cerca de um quilômetro de casa. Eu fiquei
responsável por ciceroneá-los. Uma das mães mostrou-se receosa e pediu-me que
prestasse muita atenção porque seu filho, que havia acabado de completar onze
anos de idade, ainda não havia sido “treinado” a atravessar ruas. Moram num
condomínio fechado de casas, num bairro de classe média alta. O pai do outro
colega também deixou transparecer certa apreensão, mas não me passou qualquer
orientação.
O passeio transcorreu às mil maravilhas.
Eles jogaram bola, “caçaram Pokémon” pelos celulares e, quando o tempo fechou e
a chuva parecia iminente, decidimos voltar. Antes de devolvê-los, e como a
chuva foi mais um chuvisco, levei-os para comer um cachorro-quente bem gostoso
num trailer que é montado todos os dias no final da tarde numa rua perto de
casa. Como gato escaldado tem medo de água fria, mandei mensagens para os pais
dos colegas, perguntando se estavam autorizados a comer o acepipe.
A mãe receosa disse que o filho passa
mal com salsicha e que eu não precisava me preocupar com comida, enquanto a mãe
do outro colega perguntou se eu iria pagar o lanche. O filho da mãe receosa, ao
saber que não poderia comer o dogão, sacou o celular e ligou pra mãe “como
assim eu passo mal? Eu nunca passei mal!”. Pega na mentira, permitiu, contanto
que fosse só pão com salsicha, sem maiores extravagâncias. À mãe do segundo
colega, disse que não tinha com o que se preocupar, eu pagaria de bom grado.
No Brasil, o espaço público, a “rua”,
sempre foi vista de soslaio, com desconfiança, sempre foi estigmatizada. A
“rua”, espaço físico e simbólico, é o lugar da insegurança, da violência, do
perigo, da falta de amor e da amizade, da falta de relações afetivas. Desde as
capitanias hereditárias, tudo o que é público é desprezado, tudo que é privado
é louvado. Você perde o emprego e “vai pro olho da rua”, crianças sem família
são “crianças de rua”. A violência urbana crescente apenas potencializa esta
percepção, ela não é a causa, mas ajuda bastante na reprodução do círculo
vicioso. O espaço público é abandonado e se torna violento, permanece
abandonado tanto pelo poder público (!) que não lhe recupera para usufruto dos
cidadãos, quanto por quem prefere permanecer no intramuros dos condomínios e
dos apartamentos gradeados. E, sendo um espaço violento, não é frequentado por
ninguém em sã consciência.
Aqui em casa, não sucumbiremos a essa
ojeriza e pânico provincianos. Estamos “treinados”.
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