A culpa é dos ciclistas. E dos haitianos...


Quando eu me mudei do Rio de Janeiro para Curitiba, senti falta de alguns hábitos rotineiros. Um deles era o futebol de botão jogado todos os sábados pela manhã na Praça São Salvador, uma ponte com o passado infantil, compartilhado com outros marmanjos saudosos dos jogos analógicos. Por isso, decidi investigar se no meu novo lar havia gente que também gostava de dar suas eventuais “palhetadas”. Havia, sim.

Entrei em contato com um dos entusiastas e, logo depois, fui adicionado ao grupo de Whatsapp criado, basicamente, para informar sobre as datas dos torneios. Eram dezenas, centenas de mensagens diárias, inúteis, algumas piadinhas machistas e homofóbicas ("você tem dado em casa?", em referência ao dadinho que faz as vezes da bola de futebol) típicas de crianças de cinco anos. Eu sempre relevei essa idiotice, não por concordar, obviamente, mas por achar inútil questionar o comportamento naquele espaço de extravasamento macheza máscula. Mas, dia desses, não deu.

Um dos membros começou a dizer que Curitiba, que sempre foi (!) uma cidade modelo, estava um lixo, cheia de mendigos perambulando pelas ruas, e que tinha de manda-los de volta para o lugar "de onde eles vieram" porque, do jeito que as coisas andam, a tal cidade modelo poderia transforma-se rapidamente “numa São Paulo”. Outro falou de uma praça no centro da cidade infestada de “noiados” – o mesmo que “cracudos”, ou seja, viciados em drogas - e "haitianos".

Argumentei, então, que eu sou imigrante. Que minha mulher e meu filho também são imigrantes. Que nossas famílias são imigrantes. Como os haitianos. Que eu sou um cidadão do mundo e que não tenho “pra onde voltar”. Afirmei, também, que aquele discurso era explicitamente xenófobo.

Logo depois, um dos membros entrou em contato diretamente comigo, dizendo que não conseguia ver xenofobia nas mensagens trocadas e que “eu levei para o lado pessoal” (e como não levar, certo?), que ele mesmo já havia passado por uma situação de preconceito, sendo “estrangeiro” – de outro estado - em terras curitibanas, e que tudo “havia ficado bem”. Respondi dizendo que não concordava com a relação entre os viciados em drogas e os haitianos, porque estabelecer uma relação necessária entre “marginais sociais” e um grupo de indivíduos que busca melhores condições de vida não tem nada de inocente e legitima a perseguição ao “outro”, ao “diferente” (diferente em relação ao quê, não é mesmo?).

Com relação aos mendigos, é de uma perversidade monstruosa. Em primeiro lugar, é a criminalização da pobreza, esteticamente desagradável, que precisa ser afastada de nossos olhos. Despidos de vontade e de cidadania, considerados descartáveis, lixo, podem ser transportados para lá e para cá ao bel prazer do poder público contanto que deixem de fazer parte da paisagem social. Em segundo lugar, é curiosa a sugestão de manda-los de volta para “o lugar de onde vieram”, porque este lugar “de onde eles vieram” pode ser a própria cidade de Curitiba. O higienismo social é explícito. Se puder matar, melhor.  Caso de política, não. De polícia...
  
Acredito que a xenofobia – medo e ódio ao diferente, não simplesmente “estrangeiro” - e o higienismo social sejam elementos importantes na construção de uma identidade cultural embasada por um discurso da “pureza” associada ao espaço físico e a determinados hábitos culturais. Seus porta-vozes, curiosamente muitos dos quais sequer nasceram no território sagrado, entendem, equivocadamente, que identidades são como árvores, que precisam de raízes arraigadas ao solo para sobreviver. “O Sul é meu país” é um adesivo comum de vermos colados nas traseiras de veículos circulando pela capital paranaense.

O humor judaico ilustra bem o que tentei dizer até aqui.

Conta-se que, logo após a Primeira Guerra Mundial, um alemão aproxima-se de um judeu e diz:

- Os judeus provocaram a guerra!

Então, o judeu vira-se para o alemão e responde:

- Sim. Os judeus e os ciclistas.

O alemão, intrigado, replica:

- Mas, os ciclistas? Por que os ciclistas?

E o judeu:

- E por que os judeus?

O bode expiatório sempre existirá para o xenófobo. O que muda é o seu endereço.





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