Nas gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira à frente
do saudoso Ministério da Cultura, ao longo dos governos Lula e Dilma, pela primeira
vez na história do Brasil a Cultura foi tratada como objeto de política pública
séria e democrática. Gil cunhou a expressão “do-in antropológico” para se
referir aos fazeres culturais marginalizados, espalhados pelas cidades, que
deveriam ser valorizados, ressaltando, assim, a diversidade cultural
brasileira. Ele não se cansava de falar das três dimensões da cultura - a
cidadã, a simbólica e a econômica – como vértices do triângulo fundamental na
sedimentação de uma sociedade culturalmente plural, tolerante com o “diferente”.
Juca Ferreira, por sua vez, resolveu mexer no vespeiro da Lei Rouanet,
historicamente um mecanismo excludente, porque deixa nas mãos dos departamentos
de marketing das empresas privadas o pode de decidir onde investir a verba
pública, oriundo de renúncia fiscal, uma verdadeira aberração jurídica.
Neste período áureo do Ministério da Cultura, pela
primeira vez, havia uma Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural. Pela
primeira vez, os editais de fomento à cultura foram elaborados de baixo para
cima, ouvindo os fazedores, os detentores do fazer cultural. A inscrição em
editais voltados à população indígena, por exemplo, podiam ser feitas oralmente,
através de gravações de áudio e vídeo. O Estado transformou-se num aliado do
cidadão, não mais seu opressor.
E a Casa de Rui Barbosa com isso?
Bem, neste período de efervescência das discussões
sobre políticas públicas de cultura democráticas e inclusivas, a Casa de Rui
Barbosa teve papel central, fundamental. Falo, especialmente, dos Seminários
Internacionais de Política Cultural, organizados pelo Setor de Políticas
Culturais da instituição, encabeçado por Lia Calabre. Muito do que sei sobre o
tema e daquilo que proponho em termos de ações em minha atividade profissional
como gestor de políticas públicas, se deve à capacitação e troca de
experiências ocorridas nestes Seminários. Eram uma espécie de “oásis de
reflexão”, uma brisa fresca que nos tirava, por alguns dias, da rotina
massacrante dos afazeres burocráticos típicos da administração pública.
A Casa de Rui Barbosa, até onde sei, sempre esteve
mais ou menos imune às barganhas políticas infames, às indicações de
apadrinhados, de gente desqualificada para assumir cargos que exigem um mínimo
de conhecimento técnico da área. Ela é a casa do conhecimento, do pensamento,
da reflexão. Então, quando a atual gestão decide exonerar servidores públicos de
carreira com décadas de experiência nas respectivas áreas de conhecimento e
reconhecidos no âmbito acadêmico e da administração pública por sua
contribuição à valorização da cultura brasileira em sua multiplicidade, sua
polissemia simbólica, e homenagear Thatcher e Reagan, a sensação de cusparada
na cara e tripudiada em cima de nossas cabeças é inevitável. Mas, sinceramente,
não é surpreendente.
E por que não surpreende?
Porque há um projeto autoritário que vê a Cultura como
essencialmente subversiva, transgressora, questionadora, libertadora, criativa,
democrática, “suja” porque rompe fronteiras e cutuca verdades eternas, está
sempre “fora do lugar”, fora da ordem e do progresso. E isso é ruim, para eles.
A Cultura não bate continência, e isso é inadmissível pros donos do poder hoje.
Então, ela é vilipendiada, humilhada, marginalizada, pisoteada, torturada.
Primeiro, foi a extinção do próprio Ministério da
Cultura, rebaixado à categoria de Secretaria. Como um pária, um filho bastardo,
foi incorporado inicialmente ao Ministério da Cidadania e, agora, é parte da
estrutura do Ministério do Turismo.
O ex-diretor do Centro de Artes Cênicas da Fundação
Nacional de Artes – Funarte -, responsável pela elaboração e execução de
políticas públicas para as artes, sugeriu a criação de um cadastro de artistas “de
direita”, uma versão macartista tropical de caça aos artistas “comunistas”.
Pretendeu, também, ceder um dos teatros sob a gestão da autarquia a um grupo
evangélico, ignorando solenemente o (ainda) caráter laico do Estado brasileiro.
Propôs uma “guerra ideológica” aos artistas “esquerdistas”, em nome da
reabilitação dos valores da civilização judaico-cristã. Hoje, a Funarte é
presidida por um “terraplanista”, assim como a Biblioteca Nacional. O triunfo
do antiintelectualismo.
O desprezo por quem pensa e desenvolve pesquisa – em todas
as áreas de conhecimento - já havia sido explicitado pelo próprio presidente da
república, ao sugerir que determinados cursos da área de humanas, sobretudo
Filosofia e Sociologia, deveriam receber menor investimento do governo federal.
Afinal, segundo ele, estes cursos não “dão retorno imediato” à sociedade, ao
contribuinte que lhe banca, não “produzem” nada e ainda atravancam o progresso
porque desperdiçam o orçamento público em detrimento de quem “realmente”
merece, os veterinários, os médicos, os engenheiros. O ataque ao Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e às universidades
públicas, estigmatizadas como “antro de maconheiros, viados e comunistas” não é
coincidência. Pensar é perigoso.
A perversidade se estende aos profissionais da
cultura. Recentemente, o governo federal retirou a possibilidade de sua formalização
através de inscrição no MEI – Microempreendedor Individual. A “pejotização” permite,
dentre outras coisas, o recolhimento de impostos e conta tempo de contribuição
para a aposentadoria. Muitas empresas têm contratado apenas profissionais
inscritos no MEI, portanto, aqueles que não se enquadram no mecanismo estão
automaticamente excluídos do mercado de trabalho formal, num país com
crescimento econômico pífio e taxas de desemprego e “uberização” nas alturas. Diante
da pressão da opinião pública, voltou atrás na maldade. Pelo menos, por
enquanto.
A Cultura está sendo vilipendiada. Mas, pelo menos,
eles tiraram o PT.

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