Miguel e o racismo


Outro dia, o Miguel me manda, pelo celular, um vídeo do Porta dos Fundos. Nós gostamos do Porta dos Fundos, nós somos fãs do Porta dos Fundos, para falar a verdade, porque são inteligentes e exibem um humor que nos faz pensar. O vídeo, chamado “Dominado”, é ambientado numa delegacia de polícia. A câmera está fechada num policial, sentado numa mesa dessas típicas de repartição pública, quando aparece uma mulher branca e loura, moradora do Leblon. Dá-se, então, o diálogo a seguir:

“Tem um bandido rodeando a minha casa”

“A senhora poderia descrever o elemento?”

“Claro, posso sim. É um rapaz negro.”

O policial anota a informação e espera que a senhora continue com a descrição, mas a única característica do bandido é a cor de sua pele.

“Eu não fico reparando em detalhe de bandido, né?”

“A senhora sabe a roupa que o indivíduo estava usando?”

“Cada hora ele está vestido de um jeito, ele troca de roupa muito rápido, às vezes ele até se veste de mulher. Ele me persegue por todos os cantos.”

“Ele persegue a senhora na rua.”

“Isso. Na rua, na praça, na praia, no banco, no aeroporto. Eu desconfio até que, no aeroporto, já está virando uma gangue. De uns anos pra cá, eles começaram a dominar tudo. Acho até que é a mesma gangue que invadiu o programa da Regina Casé. Antigamente, o programa dela era até bom, mas, agora, coitada...”

“Minha senhora, a senhora já teve contato ou foi atacada por algum membro dessa gangue, que a senhora diz que te persegue?”

“Ahã. Tentativa de sequestro. Um dia, eu chamei o Uber, abri a porta e, para a minha surpresa, estava ele lá, dirigindo, sabia o meu nome, aí eu fiquei assim e saí correndo”.

“E a senhora não anotou a placa do carro?”

“Não, mas eu me lembro que era um carro novo, grande, sabe?”

“E não podia ser o motorista do carro?”

“Pode ser. Mas aí tem que avisar o dono que o motorista está roubando o carro pra fazer sequestro, né?”

“Olha só, minha senhora. Está acontecendo uma confusãozinha aqui. Eu acho que o que a senhora está descrevendo pra mim é um homem negro”.

“Esse! Esse mesmo! Um sujeito negro! Eu já vi que vocês conhecem. Ele está por aqui, tem foto dele em tudo que é quanto (da delegacia). Tem que prender logo”.

“A gente não conhece ninguém aqui não, minha senhora”.

Nesse momento, entra em cena uma colega policial, negra. A senhora loura e branca começa a gritar “olha aí ele, prende ele!” (a confusão de gênero é proposital, na minha opinião).

“Minha senhora, essa é a dona Gláucia, que trabalha aqui com a gente, na corporação”.

A senhora, constrangida, responde:

“Ai, desculpa. Ai, que vergonha. (Dirigindo-se à policial negra) Traz uma coca com gelo e limão, então, por favor?”.

Quando voltei pra casa, perguntei ao Miguel o quê ele tinha achado daquele vídeo. Ele disse que tinha gostado, e eu insisti para que ele me explicasse o porquê dele ter gostado, já que os vídeos do Porta dos Fundos não se resumem, de uma maneira geral, a fazer humor, sempre vem embutida uma “moral da história”, uma mensagem a ser interpretada, um significado que vai além da mera graça ou entretenimento. Qual foi o seu entendimento?

“Ah, fala do racismo, porque pra moça todo negro é bandido”

Na mosca. Nota dez em interpretação de texto.

Ele sabe que as pessoas não são boas ou más, morais ou imorais, por um reflexo da cor da pele. Ele sabe racionalmente, porque é isso que passamos a ele sempre que somos confrontados com situações em que o termo “raça” é utilizado para explicar o comportamento humano, inclusive, porque em nosso arcabouço de crenças e valores o conceito de “raça” não é útil para interpretarmos a experiência mundana. Preferimos “desracializar” as relações sociais. Características físicas e biológicas não têm papel algum na produção de significados, de representações simbólicas, de identidades, enfim, na produção de cultura. 

O vídeo do Porta dos Fundos, por outro lado, reativou no Miguel uma percepção da realidade que, muitas vezes, se choca com essa nossa visão de mundo humanista e progressista. Há alguns anos, já inoculado com o “vírus” antropológico da perspectiva do outro, ele questionou o fato de a maioria dos mendigos que enxameiam as ruas do Rio de Janeiro e dos bandidos que aparecem nos programas policiais e nos noticiários da televisão ser, eminentemente, de pele escura.

Naquela ocasião, explicamos que a origem dessa relação entre pobreza, violência e cor da pele está no processo de colonização do país, baseada na escravidão, justificada moralmente pela religião católica - “negros não tem alma” - e, posteriormente, pelo racismo científico e a escola criminológica que relacionava características físicas e propensão ao crime. Um clássico brasileiro deste pensamento é “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil”, de Nina Rodrigues.

O fim da escravidão não foi consequência do fim do racismo. Jogados “ao Deus dará”, sem qualquer auxílio do Estado, os ex-escravos foram para as periferias das cidades sem quaisquer perspectivas de melhora nas condições de vida. As favelas contemporâneas reproduziram no cenário urbano as senzalas dos engenhos de açúcar. A pobreza e a violência associada ao racismo institucional engendrou um círculo vicioso onde a ordem dos fatores não altera o resultado: negro é pobre e bandido ou pobre e bandido é negro. “Lugar de negro” é na cozinha. Negra é empregada doméstica, usando, de preferência, uniforme branco – “me traz uma coca, então”. Negro ao volante de um carro bacana? Só pode ser sequestrador. Nosso papel, portanto, é desnaturalizar estereótipos e estigmas. 

Desta vez, quando o Miguel retomou a constatação objetiva da realidade, foi quase num tom de desculpas, porque ele já incorporou a visão de mundo que, nós, seus pais, consideramos a correta. Daí ser importante sempre reforçar a interpretação dessa realidade objetiva que, em si, nada significa. Aliás, ele já sabe do “crime de colarinho branco”, cometido por branquelos azedos que, sabe-se lá por que, não têm tanto destaque assim nos telejornais.

Ficamos orgulhosos de receber o vídeo do Porta dos Fundos, enviado por um moleque carioca cada vez menos bronzeado pela falta de sol em Curitiba. É irônico que a empatia com a dor do outro, muitas vezes, seja negada por quem, em tese, deveria estar na linha de frente do combate ao racismo institucional brasileiro, mas que prefere acreditar em “racismo Nutella”, em negros pesando arrobas e na ideia de que a escravidão, no fundo, foi boa para os descendentes de escravos.




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