Traição


A Renata brinca que eu sou a sua “esposa dos anos cinquenta”. Eu gosto de lavar a louça, coloco a roupa suja na máquina de levar e depois as penduro no varal, já me arrisco humildemente no fogão, marco as consultas médicas do Miguel, dou os remédios quando necessário, imploro novamente para escovar os dentes e levar e vestir o casaco porque o tempo vai mudar a faz frio em Curitiba, levanto de madrugada para coloca-lo de volta na cama quando o bicho papão aparece nos seus sonhos ou quando acorda com sede. Também recebo o técnico que vem consertar o aquecedor e o vazamento na pia da cozinha e estou sempre a postos para passar o aspirador de pó lá em casa, indispensável não só pela poeira inevitável, mas, sobretudo, pelos tufos de pelo que nossos três felinos costumam soltar em todos os cômodos. No dia a dia, gosto de fazer compras na padaria perto de casa, que tem umas empadas de palmito bem decentes e o obrigatório toddynho matutino diário do pré-adolescente. E, finalmente, embora não menos importante, sou eu quem, rotineiramente, por conta da proximidade do meu trabalho com a escola, o leva e o traz no final da tarde.  

Não faço mais do que minha obrigação, como parceiro numa relação afetiva marcada pela horizontalidade, onde o exercício de papéis sociais não é um dado da natureza e, geralmente, não são monopólio de qualquer um de nós dois. Sou parceiro, não ajudante. Eu não ajudo a Renata a tomar conta da casa, porque eu também moro na casa, para mim isso está muito claro. Assim como não é benesse alguma levar o Miguel à escola e pegá-lo no final da tarde, uma obviedade que, para muita gente, ainda está longe de ser óbvio.
A jornalista Rita Lisauskas, de quem sou fã, escreveu outro dia no seu blog no site do jornal O Estado de São Paulo, a respeito do imbróglio envolvendo o testamento do apresentador Gugu Liberato, em que sua mulher, mãe de seus três filhos, não é contemplada porque, aparentemente, não faziam sexo com frequência – ou não faziam sexo, ponto.  

“Um dos argumentos usados pelos homens que não querem dividir o patrimônio com as mulheres que passaram cinco, dez, vinte anos se dedicando à casa (também dele) e aos filhos (também dele) é a de que ela “nunca trabalhou”, “onde já se viu querer metade de tudo o que eu conquistei a minha vida inteira”? Mas será que esse homem teria sido assim tão bem-sucedido se tivesse que deixar o escritório mais cedo para buscar criança na escola ou se faltasse reunião porque o filho se machucou no recreio e teve de ser levado às pressas pro hospital? Aposto um picolé de limão que não”  

Talvez, corrigindo a brincalhona expressão da Renata, o correto fosse dizer que eu sou um marido dos anos 2020...

Já aconteceu algumas vezes de o Miguel, já de banho tomado e barriga forrada do lanche, me perguntar onde estava a mãe. Geralmente, respondo que ficou presa numa reunião de trabalho ou está irritada no trânsito intenso de Curitiba – intenso para os padrões provincianos curitibanos, que fique bem claro – ou que saiu com amigos para tomar uma cerveja ou que está voltando de mais uma sessão de terapia. O curioso é que as perguntas não carregam um tom de inocente curiosidade ou insuportável saudade materna. “Estar demorando” é sinal de perigo para mim, porque o Miguel desconfia que a demora da mãe signifique que o pai está levando chifre por aí.  Talvez o guri tenha um sexto sentido, vai saber.

Da última vez que isso aconteceu, ele pegou o celular para saber “onde ela está”. Eu disse que não adiantava ligar, porque “ela” não ia atender, estava ocupada. Então, tentei entender o porquê deste medo todo de uma suposta sem-vergonhice da mãe. Seria o Miguel um machista incorrigível?

- Filho, que bobagem é essa de achar que sua mãe está me traindo? De onde você tirou essa ideia? Ela está trabalhando, cara. E se fosse o contrário? E se fosse eu quem chegasse um pouco mais tarde em casa? Você também desconfiaria de mim? Que bobagem.

- Não. Se fosse você, eu não desconfiaria.

Renata nunca deu motivos para desconfiança, nossa relação é sincera, aberta, honesta. Quando ela soube do receio do Miguel, ficou muito magoada. Não é machismo, mas ainda não conseguimos entender esse medo. De todo modo, a partir de hoje, incorporo alguns hábitos bem másculos que me colocam em pé de igualdade com a minha amável hipotética infiel. As mulheres das cavernas que se cuidem, escarro na calçada, coçada de saco em público, violência doméstica, música sertaneja em altíssimo volume, porrada em homossexual.

Está na moda, né?





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