Antropólogos e outros bichos

Antropólogos são, geralmente, identificados como "aquele pessoal que estuda índio", "alternativos", se embrenham no meio da floresta para fugir da civilização, são "da paz" porque gostam de relativizar a tudo e a todos, acham o maior barato a diversidade cultural e sexual. Acho que tudo vale a pena quando a alma não é pequena. É uma categoria de gente quase pitoresca, que não deve ser levada muito a sério, "viajam na maionese", mas que é ótima companhia para bater papo num churrasco e debater assuntos "polêmicos", à base de muita cerveja, de preferência. Às vezes, são confundidos com os arqueólogos. 

Eu sou antropólogo. Lá no Rio de Janeiro, alguns amigos me chamavam de "Gabeira", em referência ao Fernando Gabeira, jornalista, escritor, ex-deputado federal, homossexual assumido, que na década de 1980 agitava as praias cariocas com sua sunga cavadíssima. A alcunha não surgiu de minhas preferências (até hoje, pelo menos), mas porque Gabeira já declarou abertamente que fuma (ou fumava) maconha e defende (ou defendia) a descriminalização das drogas. Para eles, aparentemente, o exercício do papel social de antropólogo, por ser considerado "exótico" e um tanto quanto "descolado" da realidade, está intimamente relacionado ao consumo de substâncias que potencializem a capacidade de "viajar". Ser chamado  de "Gabeira" é quase uma categoria de acusação, no sentido de que a acusação serve para escancarar a transgressão de normas socialmente estabelecidas (o uso da maconha), contribuindo para a estereotipia e estigma da antropologia, coisa de "maluco beleza". 

Essa minha introdutória viajada na maionese antropológica foi motivada por recentes afirmações do atual presidente da Fundação Cultural Palmares, instituição pública “voltada para a promoção e preservação dos valores culturais, históricos, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”, segundo consta na apresentação institucional disponível no site. A Fundação Cultural Palmares, aliás, tem trabalhado, ao longo dos anos, “para promover uma política cultural igualitária e inclusiva, que contribua para a valorização da história e das manifestações culturais e artísticas negras brasileiras como patrimônios nacionais”. 

Em sua conta no Twitter, o atual presidente da Fundação Cultural Palmares reiterou que o uso do termo “mano” está vetado a quem queira interagir com ele na rede social. “Nunca chamo ninguém de mano, exijo o mesmo. Minha conta não é ‘biqueira’ (sic) nem fã clube do Mano Brown”, escreveu, para, em seguida, concluir que “mano e, principalmente, véi e truta não combinam com a direita. São linguajar de esquerdistas e seus protegidos: presidiários, maconheiros, pixadores (sic), funkeiros e similares”.

Parece que eu não tenho feito jus ao linguajar esperado de antropólogos/maconheiros, já que nunca utilizei o termo “mano” e “véi”, muito menos “truta”, que sempre achei fosse um peixe de corpo comprimido e alongado com cerca de 60 centímetros de comprimento total e peso em torno de dois quilos, cujo dorso varia do esverdeado ao castanho, sendo as laterais acinzentadas e a parte inferior esbranquiçada com pintas escuras nas nadadeiras e no corpo (valeu, Wikipédia).  

Curiosamente, meu filho branquelo azedo – lamentavelmente, tem perdido paulatina e inexoravelmente o lindo tom bronzeado da pele em terras curitibanas - aprendeu com colegas de escola, também branquelos azedos, estes mesmos termos condenados pela presidente da Fundação Cultural Palmares. Dois deles, pelo menos, “véio” e “mano”, são utilizados à exaustão, quase como vírgula, em toda e qualquer interação social. Até onde tenho informações, o rapazola ainda não se enquadra em quaisquer das categorias de acusação infligidas a “esquerdistas e seus protegidos”.

A realidade só existe quando damos “nome aos bois”, quando fazemos uso de palavras carregadas de significados – as famosas “categorias” – imprescindíveis para distinguirmos alhos de bugalhos. As categorias, que nos ajudam a classificar – ou seja, separar – a realidade, também exercem papel importante na construção de identidades ao estabelecer fronteiras simbólicas entre quem está “dentro” e quem está “fora”. Nos Estados Unidos, por exemplo, no âmbito da luta pelos direitos civis, pretendeu-se abolir o termo “nigger” da linguagem “nativa”, termo considerado pejorativo e estigmatizante, análogo ao “preto” brasileiro, que parte do movimento negro, aboliu em favor do termo “negro”. “Black is beautiful”, “preto é cor, negro é raça”.

Para além da crítica – necessária, sem dúvida, a meu ver – ao discurso do atual presidente da Fundação Cultural Palmares, é importante ressaltar que estamos diante de uma luta pelo poder de nomear, categorizar, classificar e identificar quem faz e quem não faz parte do grupo. Para uns, “mano”, “véio” e “truta” são formas de expressão de certa identidade negra; para outros, é praticamente um crime, como um presidiário ou funkeiro – este, particularmente, comumente associada à negritude. Sem falarmos na utilização de categorias “nativas” por “estrangeiros”, como é o caso dos branquelos azedos curitibanos que ressignificam os termos, redefinindo fronteiras e colocando na berlinda a legitimidade unívoca dos que se arvoram “guardiões da verdade”.  

Mas, dirão vocês, isso está parecendo papo de antropólogo! Então, acho melhor parar por aqui. 



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