O chinês de hoje é o judeu de ontem

Não sabíamos ainda, mas aquela seria a última semana antes que a escola suspendesse as aulas por conta da pandemia do coronavírus. No sábado, fomos à praça onde costumeiramente os colegas de sala se encontram para jogar bola, pingue pongue e caçar Pokémon. Era aniversário de um deles.  Na pequena roda de pais e mães, o assunto não poderia ser outro senão as incertezas quanto ao calendário escolar e a alteração radical nos nossos cotidianos, nas relações de trabalho e familiares.  

“Os chineses são porcos”, havia sentenciado um deles, semanas antes, quando foram identificados os primeiros casos da infecção na cidade chinesa de Wuhan. Outro, lembrou que os restaurantes chineses são imundos. Também vaticinou que o governo chinês produz, periódica e maquiavelicamente, vírus capazes de criar pânico nas bolsas de valores “ocidentais” - citou o “mal da vaca louca", que surgiu na Inglaterra... -, derrubando o valor das empresas e, consequentemente, facilitando o domínio econômico do monstro comunista. Talvez as mortes de cidadãos chineses seja um efeito colateral necessário a um bem maior. Sem falar nos lucros das farmacêuticas que produzirão as vacinas capazes de frear o genocídio, como foi o caso do Tamiflu, medicamento criado para combater o vírus H1N1, popularmente conhecido por “gripe suína”, embora seu inventor seja austríaco e a empresa que o produz, suíça.  

Então, eu lembrei à pequena roda que os “orientais” - categoria que não explica absolutamente nada, mas facilita a estereotipia e a estigmatização - são muito conhecidos pela utilização rotineira de máscaras quando acometidos por infecções respiratórias, como gripes e resfriados. É um hábito culturalmente aprendido e demonstra, simbolicamente, o respeito ao outro, um senso de coletividade e empatia, um espírito de solidariedade, enfim, um conceito de cidadania raro de encontrarmos nestes tristes trópicos. Aliás, fiz questão de frisar que, o mais comum por aqui, é o fulano espirrar e tossir sem colocar as mãos na frente da boca, escarrar e assoar o nariz nas vias públicas limpando as mãos, ato contínuo, na barra da camisa. Silêncio sepulcral.  

Mas não tem jeito. O inferno são os outros. O etnocentrismo, pai e mãe da intolerância, é implacável. Os chineses são selvagens porque comem morcego, gafanhoto, minhoca e cachorro, se não comessem essas barbaridades culinárias não haveria pandemia nenhuma. Como disse o síndico do meu prédio, TODOS os vírus vêm da China “pra variar”. E o presidente norte-americano sempre se refere ao coronavírus como “o vírus da China”, metendo no mesmo saco de lixo uma população de um bilhão e trezentos milhões de pessoas. Civilizados somos nós, que comemos coração de galinha, rabada e dobradinha, feijoada com pés, rabos e orelhas de porco e não dispensamos uma carne mal passada pingando de sangue. Pergunte, de curiosidade, a um vegetariano “ocidental” quem ele considera bárbaro. 

Os chineses de hoje são os judeus de ontem. Bodes expiatórios. São os Rothschild modernos, querem dominar o mundo. Não bebem o sangue de Cristo, mas de morcegos. São vítimas do culto à ignorância e da indigência intelectual que relativiza o conhecimento científico como sendo “apenas mais um ponto de vista”, uma questão de opinião e crença. Vítimas de uma época em que a informação, ou melhor, a desinformação é construída no submundo das redes sociais e reproduzida como verdades inabaláveis. É o famoso tiozão do WhatsApp, que adora postar vídeos, porque ler mais de uma página cansa seus parcos neurônios e basear-se em instituições e especialistas reconhecidos por sua competência profissional, hoje em dia, é coisa de “isentão” e “politicamente correto”.  

Machado de Assis escreveu crônicas semanais na Gazeta de Notícias entre 1892 e 1897. No dia 6 de janeiro de 1895, lemos o seguinte: "Que inveja que tenho ao cronista que houver de saudar desta mesma coluna o sol do século XX! (...) Naturalmente, maldirá o século XIX, com as suas guerras e rebeliões, pampeiros e terremotos, anarquia e despotismo, cousas que não trará consigo o século XX, um século que se respeitará, que amará os homens, dando-lhes a paz, antes de tudo, a ciência, que é ofício de pacíficos". 

Não podia estar mais equivocado, nosso gênio da literatura.  



Comentários

Raymundo disse…
Muito boa crônica. Quando ouço falar de virus chinês, lembro logo da Doença de Chagas e da Febre amarela, que dizem ser made in Brasil. abraço. do Raymundo