O machista envergonhado


Assisti a um vídeo bastante perturbador. Durava menos de dois minutos e começava pretendendo abalar as estruturas do politicamente correto. “Precisamos do machismo” era o slogan que prenunciava um monte de dados provando empiricamente que a onda feminista não passa de “mimimi” de gente ressentida e mal resolvida.

E por que precisaríamos do machismo, ora bolas? Eis a lista avassaladora:

Porque 90% das brigas judiciais por guarda e pensão é ganho por mulheres.

Porque, de cada 11 mortes por violência, 10 são homens.

Porque homens são apenas 40% dos estudantes universitários.

Porque homens não têm um dia dedicado especialmente a eles.

Porque, apesar de o câncer de próstata matar, proporcionalmente, o mesmo que o câncer de mama, os gastos com prevenção e campanhas de conscientização são direcionados ao segundo.

Porque a licença-maternidade é de 180 dias ao passo que a licença-paternidade é de apenas 5 dias.

Porque, embora as mulheres sejam apenas 5% nas empresas (em cargos de direção?), os homens ocupam 95% dos cargos de lixeiro, pedreiro e minas de carvão.

Porque “o trabalho costuma ser obrigatório e cobrado, apenas, aos homens”.

Antes de responder às afirmações do vídeo e já antecipando a conclusão deste meu texto, digo que a causa de todos esses “males” que afligem os homens são consequência mais do próprio machismo institucional que ainda permeia a sociedade brasileira do que do feminismo, entendido equivocadamente como seu oposto e inimigo. Nas sábias palavras do filósofo e educador Mário Sergio Cortella:

“Machismo não é o contrário de feminismo. Machismo é a suposição de que nós, homens, somos superiores. Feminismo não é a suposição de que mulheres são superiores. Feminismo é a crença de que homens e mulheres são iguais. Por isso, o feminismo não é coisa só de mulheres. Eu sou feminista. (...) O contrário de machismo é inteligência”.

Sendo verdadeira a afirmação de que 90% das brigas judiciais por guarda e pensão é ganho por mulheres, a pergunta básica que devemos fazer é “por que será que isso ocorre?”. Uma hipótese plausível vem de uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, em 2017, segundo a qual mulheres trabalham, em média, três horas semanas a mais que os homens. Entre as ocupadas, que estão no mercado de trabalho, são 7,5 horas a mais dedicadas aos afazeres domésticos em relação aos homens, ou seja, homens trabalham mais fora de casa, embora permaneça desproporcional sua participação nas tarefas domésticas.

O IBGE investigou 12 tipos de afazeres domésticos, divididos em dois grupos: cuidados com os familiares e cuidados com o lar. As mulheres têm maior participação em 11 deles: alimentar, vestir, pentear, dar remédio, dar banho, trocar fralda, por para dormir; ajudar nas tarefas de casa; ler, jogar e brincar; cuidar ou fazer companhia; levar à escola, médico ou parque; cozinhar, arrumar a mesa e lavar a louça; lavar roupas e sapatos; limpar a casa, garagem e quintal; pagar contas, contratar serviços; fazer compras ou pesquisar preços; cuidar dos animais domésticos. Homens se sobressaem apenas no quesito “pequenos reparos em casa, no carro ou de eletrodomésticos” e se aproximam das mulheres no quesito “ler, jogar e brincar”. Ou seja, homens cozinham por prazer, nos finais de semana, e aproveitam os momentos de relaxamento no parque ou na praça, quando a obrigação dá lugar à diversão. (Ora vejam: descobri-me mulher...).

É plausível, portanto, que a dupla jornada imputada às mulheres explique a balança desfavorável aos homens nas brigas judiciais pela guarda dos filhos, fruto direto do machismo e patriarcalismo que, embora admitindo sua participação nos espaços públicos, ainda enxergam seu lugar como eminentemente doméstico, tomando conta dos filhos. Daí, também, a disparidade entre o período concedido às mães e aos pais após o nascimento de filhos e filhas. O vídeo, atirando no próprio pé, reforça o estereótipo ao dizer que “o trabalho costuma ser obrigatório e cobrado, apenas, aos homens”. O problema, portanto, não é está na mulher, que quer trabalhar e compartilhar as tarefas domésticas – incluindo-se aqui o cuidado com os filhos – mas no homem, que precisa entender que lugar de mulher é onde ela quiser.

Sobre o queixume relativo ao maior contingente de mulheres nas universidades, é interessante nos debruçarmos sobre um recente estudo do Observatório Ibero-Americano de Ciência, Tecnologia e Sociedade, intitulado “A desigualdade de gênero na produção científica ibero-americana”, que revela ser o Brasil o país da região com maior porcentagem de artigos científicos assinados por mulheres, nada menos do que 72% dos 53,3 mil publicados entre 2014 e 2017. A relevância feminina no ambiente acadêmico é confirmada pelo último Censo da Educação Superior, divulgado em 2016, segundo o qual as mulheres representam 57,2% dos alunos matriculados em cursos de graduação e também são maioria entre os bolsistas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, vinculada ao Ministério da Educação, representando 60% dos beneficiários na pós-graduação e nos programas de formação de professores. Em resumo, trata-se de mera competência acadêmica, e não um complô maquiavélico contra o mundo falocêntrico.  

Sobre a tragédia cotidiana da violência urbana que mata, segundo o vídeo, 10 homens em cada 11 pessoas assassinadas, trago dados do Atlas da Violência, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2018, segundo o qual, no Brasil, em 2016, a taxa de homicídio superou 30 para cada grupo de 100 mil habitantes. Nesse mesmo ano de 2016, foram cometidos no Brasil, ainda de acordo com o Atlas da Violência, 62.517 assassinatos, trinta vezes mais do que na Europa, uma média de 153 vidas perdidas violentamente a cada dia, sendo que 71% destes homicídios foi consequência de perfuração a bala.

Seria, no mínimo, ingenuidade acreditar que os homicídios foram cometidos, eminentemente, por mulheres. Num país marcado historicamente pela cultura da violência, pela ideia de que as desavenças se resolvem “na bala” e pela força física, “na porrada”, nada mais compreensível – do ponto de vista antropológico, é claro – que homens matem homens. E mulheres. Quem aqui nunca ouviu a máxima de que “o homem pode até não saber por que está batendo, mas a mulher sabe muito bem porque está apanhando”?

De acordo com o suplemento de vitimização da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio – PNAD/IBGE, de 2009, a cada ano, 1,3 milhão de mulheres são agredidas no Brasil. Segundo o IPEA, no estudo “Participação no mercado de trabalho e violência contra as mulheres no Brasil”, publicado em 2019, para além da questão de segurança pública e de manutenção dos direitos básicos de cidadania, a violência doméstica possui fortes implicações para o desenvolvimento do país, pois envolve perdas de produtividade das vítimas diretas e indiretas, eventuais custos de tratamento no sistema de saúde (já em frangalhos, diria eu) e menor participação da mulher no mercado de trabalho. A responsabilidade pela matança masculina e feminina é, de novo, haja monotonia argumentativa, dos próprios homens.

Sobre a concentração dos homens em profissões pouco reconhecidas social e economicamente – como os lixeiros, os pedreiros e os mineiros -, desprezo reforçado pelo vídeo, que as compara com o trabalho em “empresas”, talvez mais dignos, é importante ressaltar que a divisão sexual do trabalho é cultural, nada tendo a ver com preconceito contra os homens. Por outro lado, a disparidade salarial existente entre homens e mulheres ocupando os mesmos cargos é explicitamente uma discriminação de gênero. De acordo com o IBGE, conforme a idade da mulher brasileira aumenta, também cresce a desigualdade em relação ao salário pago aos homens, sempre maior. A desvantagem salarial existe independente da profissão, da auxiliar de serviços gerais aos cargos de gerência.

Finalmente, mas não menos importante, à crítica relativa à falta de campanhas de conscientização sobre o câncer de próstata deve-se reconhecer inicialmente o preconceito imemorial da sociedade brasileira, refletida historicamente nas políticas públicas de saúde, contra representações da masculinidade que se contraponham ao ideal heterossexual. O ânus, portanto, como tabu. Lembremos que o “teste do toque” sempre foi alvo de piadas machistas. Felizmente, aos poucos, o Estado brasileiro vem combatendo tamanha obtusidade intelectual, como é o caso da campanha Novembro Azul, em analogia ao Outubro Rosa, dedicado ao combate ao câncer de mama.

Ao final do vídeo, senti tristeza, repulsa e indignação porque ele foi compartilhado por um homem que, envergonhadamente, se escondeu atrás do verniz pretensamente legitimador do discurso antifeminista de uma mulher, a atriz principal, a “guardiã da verdade” do tal lugar da fala. Sim, o slogan “precisamos do machismo” e a deturpação do significado do feminismo foram defendidos por uma mulher.  

No mundo ideal, não há um dia especial dedicado às mulheres, delegacia especial para o atendimento das mulheres, vagão de metrô exclusivo para as mulheres, tampouco Lei Maria da Penha, porque não há machismo. Até lá, é obrigação moral de nós, homens feministas, solidarizar-nos com as mulheres feministas que simplesmente lutam pelo direito de ser quem desejam ser sem correrem risco de morte ou mutilação.  

Vivam elas!



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