Antes de deitar-se, ele sempre vinha me dar um beijo
de boa noite. Eu estava refastelado no sofá-cama da biblioteca, assistindo
qualquer bobagem na televisão. Chegava por trás, pegava a minha bochecha
direita e tascava um beijo molhado, roçando meus lábios. Aquilo me deixava
irritado, ou melhor, fingia irritação. “Boa noite”, falava com o indefectível
sotaque estrangeiro. De longe, eu ouvia alguma sinfonia que saía do pequeno
aparelho de rádio da cabeceira de sua cama, a saudosa rádio MEC do Rio de
Janeiro que lhe embalava o sono. Era um amante da música clássica e dos livros.
Da literatura judaica, que lia na língua original, o iídiche, falada pelos
judeus ashquenazitas da Europa Oriental. Nasceu num pequeno vilarejo chamado Brok, quase
na fronteira polonesa com a Bielorrússia, que contava com cerca de dois mil
habitantes.
Por muitos anos, almoçamos juntos aos domingos. Depois
que se mudou para Copacabana, um de seus restaurantes favoritos, escolhido para
o encontro familiar dominical, era o Peixe Vivo, a duas quadras de casa. Ali,
parecia uma criança numa loja de doces com cheque em branco. Saía do regime
estrito exigido durante a semana – lembro-me dos vários remédios dispostos
sobre a mesa da cozinha, onde fazíamos as refeições. No Peixe Vivo, começava
com bolinhos de bacalhau e uma sopa pra lá de substanciosa, chamada Leão
Veloso. A sopa sempre fervendo, no escaldante Rio de Janeiro. Lembrança dos
invernos desesperadores na Europa, talvez. Calor é vida. De prato principal,
Linguado à Belle Meunière. De sobremesa, fruta, pra inglês ver. Matava-se a
fome, uma fome ancestral atávica, marcada a ferro e fogo pelos quarenta anos no
deserto e pela sanha nazista.
Recebia amigos e ficavam papeando durante toda a
tarde. Amigos que sobreviveram ao genocídio. Havia um casal muito simpático,
ela portava no antebraço o infame número usado para marcar, como gado, os
judeus de Auschwitz, e ele havia sido salvo por Oskar Schindler, aquele
empresário alemão que salvou muitos judeus, empregando-os em suas fábricas, e
que depois virou tema de filme hollywoodiano. A conversa se dava em polonês e
em iídiche. Muitas vezes, eu ficava sentado na sala, ouvindo-os apenas, não
entendia patavinas, mas gostava de ouvir o som e observá-los felizes. De vez em
quando, era servido uísque, afinal, ninguém é de ferro. Acompanhavam castanhas
de caju e skinny, um salgadinho de milho cuja predileção passou às futuras
gerações, Miguel é fã incondicional.
Não tinha o hábito de jantar. Minha avó preparava a
sopa, sempre fervendo, obviamente, a melhor sopa do mundo, que saudades. Ele
tomava fazendo aquele barulho irritante, para não queimar a boca. Acompanhava
pão preto e uma maçaroca – que, anos mais tarde, passei a gostar – de ricota amassada
e iogurte. E chá, chá inglês. Escutava a segunda edição do noticiário da Rádio
Jornal do Brasil, às seis e meia da tarde, antes da Voz do Brasil. O som
altíssimo, ele não dava o braço a torcer, não admitia que a audição piorasse a
cada ano, a minha avó gritava em polonês “abaixa isso, David” e ele fazia cara
de paisagem e respondia “mas não está tão alto...”. Adorava o cozido que minha
mãe preparava, uma vez ao ano, quando “esfriava” no inverno carioca.
Caminhava religiosamente todos os dias no calçadão de
Copacabana. Por recomendações médicas, mais do que por gosto, acho. Também, de
quando em vez, nadava na piscina do prédio, no estilo “cachorrinho”, e eu,
moleque, atrapalhava, mas ele não se incomodava. Era um cara alto, acho que
tinha mais de um metro e oitenta e cinco, calçava um tênis difícil de encontrar
e que costumava trazer de viagens ao exterior. Cortava a unha com gilete, o que
me afligia muitíssimo. Roía as unhas, sempre roeu, imagino que tenha adquirido
o mau hábito durante a guerra. Soltava uns puns altíssimos e, assim como no
caso da audição, quando lhe chamavam a atenção, fingia que não era com ele.
Mudamo-nos para Copacabana também, em 1999, para
ficarmos mais perto. Nosso apartamento ficava a cinco minutos de caminhada. Muitas
vezes, na volta do calçadão, ele parava para tomar um suco de laranja ou uma
água de coco. Aproveitamos pouco essa proximidade física, porque ele morreu em
2000.
Quis o destino que eu nascesse no mesmo dia dele.
Hoje, três de março. 1916. 1978. Ele viveu para ver o neto primogênito
formar-se, e a alegria que transparece na foto que tirei a seu lado, no dia da
minha formatura, não me deixa mentir, parece que está dizendo, com o sorriso
escancarado, “dever cumprido”.
Ele foi, antes de tudo, um forte.
Saudades, vovô David.
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