Conta a estória que, há cerca de três mil e quinhentos anos, um certo Faraó mandou matar todos os bebês hebreus, povo escravizado que ajudava a construir as famosas pirâmides. Foi então que um casal decidiu salvar da morte seu pequeno rebento, colocando-o numa cesta de vime para, em seguida, despachá-lo por um rio, chamado Nilo, que passava perto de casa. O bebê parou às portas do palácio do Faraó, e foi ali criado como um verdadeiro príncipe. Já adulto e barbudo, descobriu-se tanto hebreu quanto aqueles que eram violentados diariamente pelo regime tirânico. Moisés, que era seu nome, desafiou o poder do Faraó, exigindo a libertação imediata dos hebreus, recebendo uma sonora gargalhada, afinal, como ousava desafiar o representante divino na terra?
O verdadeiro representante divino na terra, entretanto, era Moisés. E, como tal, advertiu ao genocida real que a permanência dos hebreus no cativeiro egípcio não ficaria impune. E assim foi feito. E vieram as conhecidas pragas. A primeira, as águas do rio Nilo transformadas em sangue, matando todos os peixes; a segunda, rãs por todos os lados; a terceira, piolhos atormentando homens e animais; a quarta, moscas em tamanha quantidade que escureceram o céu; a quinta, a morte de animais, inviabilizando a economia; a sexta, feridas purulentas por todo o corpo; a sétima, chuva de granizo, arrasando as plantações; a oitava, nuvem de gafanhotos; a nona, a escuridão e, finalmente, a décima praga, a morte dos primogênitos humanos e de animais.
A população egípcia clamou ao Faraó que libertasse os hebreus, não aguentavam ver seus filhos e netos morrendo sem qualquer justificativa - há justificativa moral para matar alguém, pelo motivo que seja? Sentiram na pele a velha máxima de que “pimenta nos olhos dos outros é refresco”. “Chega”, bradou irado o Faraó. Dirigindo-se aos hebreus, ordenou-lhes que partissem imediatamente, de modo a cessar a ira divina. No meio do caminho, arrependeu-se, sua sede de vingança e seu caráter despótico levaram-no a arrepender-se exigindo a recaptura dos recém-libertos. Então, a mitologia narra a abertura milagrosa das águas do Mar Vermelho, permitindo apenas aos hebreus a travessia de uma margem à outra, afogando os soldados faraônicos exatamente no momento em que tentavam alcançar a massa de gente liderada por Moisés.
E, então, teve início a saga em busca da liberdade. Os hebreus vagaram pelo deserto por nada mais, nada menos, do que quarenta anos. Buscava-se a liberdade física, mas, sobretudo, a liberdade intelectual, a necessidade imperiosa de apagar, de uma geração para outra, a memória da escravidão - diferente de apagar, da memória, a escravidão, percebam bem -, desnaturalizando a ideia de que um homem tem o direito de possuir outro homem, como se objeto fosse. Nesse período, ainda de acordo com a mitologia, receberam as Tábuas da Lei, os dez mandamentos. Sem tempo para deixar fermentar o pão, comeram pão ázimo, uma espécie de biscoito cream cracker que eu, particularmente, adoro.
Hoje, nós, judeus, hebreus modernos, comemoramos o Pessach, essa travessia, a busca pela liberdade. Não é à toa que, em inglês, a festa foi traduzida como Passover, ou seja, passar por cima ou atravessar. Faz todo o sentido. Pouco importa se o Mar Vermelho realmente abriu, se realmente os egípcios foram castigados divinamente com as dez pragas, se Moisés recebeu, no Monte Sinai, as Tábuas da Lei ou se vagaram, exatamente, por quarenta anos pelo deserto. Devemos valorizar, sempre, o que há por trás dessa narrativa fantástica, lendária, mitológica, as metáforas e simbologias atemporais. Sim, porque o importante é interpretar a travessia como a busca por uma sociedade mais justa, humana e que celebre a diversidade.
A travessia é a fuga da poluição que mata nossos rios e acelera o aquecimento global – impressionantes as fotos da NASA, comparando a qualidade do ar em cidades chinesas e italianas antes e depois da quarentena imposta pelo coronavírus -; do fundamentalismo religioso que desdenha o conhecimento científico e semeia ódio e intolerância; do fundamentalismo econômico que transforma o trabalhador em escravo moderno, com cada vez menos ou nenhum direito, e relega milhões de pessoas à miséria em nome da meritocracia; de governantes que gozam com a dor, a morte, a violência infligidas ao “outro”, ao “diferente”, indigno da vida.
Ainda há um longo caminho a percorrer. Façamos juntos essa travessia.
Feliz Pessach!
(Edit: um passarinho me contou que a tradução do Pessach para o inglês - Passover, ou seja, "passar sobre" - está relacionada com a marca que deus teria ordenado que os hebreus fizessem em cima das portas de suas casas. Assim, quando viesse o anjo da morte para cumprir uma das pragas, ele não atingiria os moradores das casas marcadas. Passaria sobre elas. Enfim, dei minha própria interpretação à tradução...)
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