Logo que me mudei para a Curitiba, fui passear. E a melhor maneira de conhecer uma cidade, qualquer cidade, dela apropriar-se, é andar. Andar com os pés, não com as rodas dos carros. Eventualmente, pegava o ônibus biarticulado, símbolo do transporte público inteligente curitibano, que me largava em algum ponto e de onde eu saía batendo pernas. Ela é convidativa para passeios ao ar livre, há muitos parques e as ruas são bastante bem conservadas e limpas. Sem falar no clima que, embora carioca, me agrada muito. Apesar desse convite, os nativos não são muito de andar por aí, a esmo, pelo prazer de ter prazer em andar por aí, sem objetivo, sem hora marcada para nada, um flaneur despreocupado.
Certa vez, ainda um pouco desorientado geograficamente, perguntei a um rapaz que passava por mim onde ficava o estádio do Coritiba, e ele me respondeu que estava há mais ou menos oito quadras. Agradeci a informação e ele, ao perceber que eu ia caminhando, perguntou-me, com olhar incrédulo, se ia realmente andando, se de carro levaria uns cinco minutos. As coisas por aqui são assim mesmo. Tudo é “longe”. Exceção feita ao centro da cidade, nos bairros mais residenciais o fluxo de pessoas nas ruas, a qualquer hora do dia, e muito mais à noite, depois das seis da tarde, é diminuto. Se maldoso fosse, a compararia com uma cidade fantasma. E isso me dói o coração porque, de onde eu venho, da castigada antiga capital federal, com todas as mazelas que temos direito e das quais não podemos nos esquivar, a vida no espaço público pulsa, e pulsa forte. A qualquer hora do dia, ou da noite.
Lá no Rio de Janeiro, morávamos em frente à Praça São Salvador. Seu chafariz centenário, no centro, convivia harmonicamente com o pequeno parquinho das crianças e o coreto, palco do tradicional chorinho dominical. Aos domingos, também, a feirinha de artesanato. Durante a semana, jovens e crianças brincando de bola, andando de bicicleta ou fazendo manobras radicais no skate, e os mais velhos sentados nos bancos espalhados pelo quadrilátero, jogando conversa fora.
A nossa “pracinha”, que era como nos referíamos a ela, como um filho dileto, também era um símbolo de resistência à obtusidade moral que assaltou a sociedade carioca nos últimos anos. Lá, num dia de quinta-feira, houve um “beijaço”, em repúdio à agressão que um casal homossexual sofreu no restaurante defronte à praça. Lá, choramos a perda das eleições municipais do Marcelo Freixo para um bispo da Igreja Universal. Lá, “batíamos ponto” praticamente todos os dias da semana, tomando uma cerveja gelada comprada na Adega da Praça, era como uma terapia coletiva. Um oásis no meio da selva urbana.
Por muitos anos, diariamente, atravessei a nossa pracinha em direção ao trabalho, a cerca de três quilômetros dali. Ia caminhando, é claro, ouvindo música. Seguia pela rua Ministro Tavares Lira, também conhecida como “Rua Nova”, onde, nos finais de semana, costumávamos comprar pão francês na Panificação São Luiz, até o Largo do Machado. No Largo do Machado, que é uma grande praça, fica a imponente Igreja de Nossa Senhora da Glória e a estação de metrô, cujo movimento é intensíssimo nas primeiras horas da manhã e no final da tarde. Em frente, a Galeria Condor, que abriga a Rotisseria Sírio-Libanesa, cujas tradicionalíssimas esfihas de verduras, carne e queijo são um deleite ao paladar mais exigente, sem falar nas beringelas e pimentões recheados e o arroz de lentilhas e o dono te chamando de “brimo”, corruptela de “primo”, que é, aparentemente, como os imigrantes daquela região do planeta referem-se uns aos outros.
Tomo a Rua do Catete, um mundaréu de gente. Mal cuidada. Camelôs espalhando seus produtos pelo chão, vendendo de tudo o que se possa imaginar, buscando sustento. Passo pela pequenina Sorveteria Itália, que nos refrescava nos dias mais calorentos – quase todos, ora. Seguindo, está o belo Palácio do Catete, onde Getúlio Vargas decidiu sair da vida pública para entrar na privada, e que hoje abriga o Museu da República e um belíssimo jardim, que frequentamos muito quando o Miguel era pequeno. Antigas lojas de móveis resistem, sabe-se lá como. Adiante, na bifurcação com a Rua Pedro Américo, a delegacia do Catete, um prédio em estilo eclético, inaugurada em 1908 e tombada como patrimônio em 1992.
No final da Rua do Catete, viro à esquerda e entro na Rua da Glória, no bairro de mesmo nome, e sou recepcionado por um relógio de 1905 na entrada da conhecida Murada erguida para conter a ressaca do mar que chegava até ali, antes do aterramento, e por um chafariz construído em 1772 que trazia água de Santa Tereza. Às quintas-feiras, pego um “atalho” pela Rua Conde de Lages e passo por dentro da feira semanal, compro alguma fruta para comer depois do almoço, paro nas barracas de peixe e comparo os preços do salmão e do atum.
Andando por essas ruas estreitas, com antigos prédios residenciais e sobrados, silenciosas, idosos sentados em cadeirinhas na calçada vendo o tempo passar e crianças brincando no meio da rua, sou transportado a um Rio de Janeiro antigo, idílico, mais simples. Tomo, então, a Rua Joaquim Silva e passo por trás da Sala Cecília Meireles, casa de boa música. E também pela Escadaria Selarón - em homenagem ao artista chileno Jorge Selarón -, formada por duzentos e quinze degraus e cento e vinte e cinco metros de comprimento, cobertos por mais de dois mil azulejos recolhidos em mais de sessenta países.
No final da Rua Joaquim Silva, deságuo no Aqueduto Carioca, mais conhecido como Arcos da Lapa, obra arquitetônico de maior vulto do Brasil colonial, um dos mais conhecidos cartões-postais do Rio de Janeiro, construído no século XVIII para transportar as águas do Rio Carioca para a cidade. Cruzo os Arcos e entro na Rua do Riachuelo, imortalizada por Machado de Assis, que a chamava de Matacavalos, onde Bentinho, personagem principal de Dom Casmurro, passou a infância. Ando alguns metros e dobro à direita, na Rua do Lavradio. Sigo-a até o fim, destino final.
Às 17:00, retorno pelo mesmo trajeto. No Largo do Machado, virou uma tradição parar na barraca de um simpático refugiado sírio, sempre com um sorriso estampado no rosto machucado pela estupidez dos homens, petulante concorrente da Rotisseria, e suas deliciosas esfihas abertas de beringela. E, de repente, me vejo novamente no ambiente cálido da minha pracinha, cheia de gente, de calor humano, do pipoqueiro que fala aos berros e faz aquelas piadinhas sem graça. Hora de subir, tomar banho, lanchar, ver qualquer bobagem na televisão e dormir. Amanhã é outro dia.
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