No último domingo, o gramado do Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, estava cheio de gente, assim como os bares no entorno. O céu de brigadeiro e a temperatura ideal eram convites irresistíveis. A juventude curitibana deu uma banana pra pandemia, afinal de contas, quem ela pensa que é (a pandemia, claro), coloque-se no seu lugar, ora essa. Ninguém pode tolher nosso direito de ir e vir, isso é coisa de ditadura comunista, é assim que eles querem dominar o mundo, mantendo-nos em casa. Uma loja de móveis, seguindo a lógica do "a ocasião faz o ladrão" (sem duplo sentido, por favor) resolveu fazer uma promoção "imperdível", e a multidão se acotovelava em busca daquela tão sonhada cama king size. Distanciamento social? Máscaras, item obrigatório na capital paranaense desde o dia 17 de abril? Não, obrigado.
O mesmo panorama na Praça Eppinghaus, onde costumávamos levar o Miguel para brincar com os colegas da escola, até a orientação da Organização Mundial da Saúde (não é uma gripezinha) pelo isolamento social, que seguimos rigidamente, como não poderia deixar de ser. A quadra de basquete de lá permanece com os jogadores habituais, trocando fluidos corporais como se não houvesse amanhã. Aliás, surpreendente e lamentavelmente, algumas mães de colegas estão organizando um encontro lá na praça, no próximo sábado, mortificadas pela saudade que os filhos têm uns dos outros. Todos bem protegidos, com máscaras, e mantendo a distância social regulamentar. Esquecem-se, ou ignoram, que o uso de máscaras não é salvo-conduto para a confraternização. Como diria o gaiato, "me inclui fora dessa".
Precisei ir ao caixa eletrônico do banco realizar uma transação indisponível pelo aplicativo. Na porta, vários avisos informando sobre o perigo daquele ambiente, "propício ao coronavirus". Qual não foi minha surpresa, portanto, ao deparar-me com uma jovem mulher, sem máscara, num dos caixas eletrônicos, com um carrinho de bebê. Pensei com meus botões que a jovem mãe não tivesse com quem deixar o recém-nascido, mas, por que cargas d'água não cobria o rosto de modo a minimizar a possibilidade de contaminar-se a si e aos outros. Naquele mesmo dia, pessoas cantavam "parabéns pra você" e ouviam música num prédio vizinho ao nosso, descumprindo explicitamente a orientação de não nos aglomerarmos. E o grupo de Whatsapp do qual faço parte, de corredores e ciclistas, continua a todo vapor, é apenas uma corridinha ou uma pedaladinha no parque, né. Eu não, fique claro. A meta anual foi pras cucuias.
É tentador não sair de casa sabendo que as ruas estão vazias, que a possibilidade de "esbarrar" com outro corredor ou ciclista é remota e que todos os cuidados são religiosamente tomados, como o uso de máscaras e a higienização das mãos. Reconhecer que há uma pandemia e que o isolamento social é a medida mais eficaz para a mitigação do problema (não há anticorpos para o vírus e o sistema de saúde público e privado podem colapsar em caso de contaminação em massa), ou seja, sucumbir a fatos objetivos não convencem as pessoas. O "lugar de fala" da Ciência vem sendo solapado pela ideia de que é apenas uma dentre outras muitas opiniões passíveis não só de explicar como de dar soluções ao problema.
No fundo, trata-se de uma questão ética.
É moralmente errado dar uma corridinha no parque ou encontrar rapidamente os amigos porque a noção de regra seria abandonada se todos a infringissem, e uma regra é, por definição, algo que as pessoas devem respeitar e arcar com seus custos. Além disso, se todos se sentissem à vontade para burlar a regra de isolamento, a cidade voltaria a ficar cheia e a probabilidade da contaminação em massa aumentaria enormemente. As ruas estão vazias (ou menos cheias) exatamente porque tem gente fazendo o dever de casa.
Segundo o filósofo Alberto Giubilini, num texto publicado no blog de Ética Prática da Universidade de Oxford, a manutenção da distância social é um problema de ação coletiva, isto é, de adesão individual ao corpo coletivo. Requer cooperação de uma parcela suficientemente grande da população, e nenhum indivíduo ou grupo de pessoas dentro de uma comunidade poderia garantir o êxito da manutenção do distanciamento mesmo que pudéssemos tolerar um grupo pequeno de pessoas que fugissem à regra. Se tolerássemos, como definiríamos os poucos privilegiados que poderiam correr enquanto os outros ficassem em casa?
Se a obrigação de manter o distanciamento social é uma questão de responsabilidade coletiva, os encargos dessa responsabilidade devem ser compartilhados de maneira justa entre todos os indivíduos da coletividade. Há uma obrigação moral de cada um de nós fazer a sua contribuição justa porque, mesmo que seja uma contribuição “insignificante”, sua repercussão é psicologicamente forte, uma vez que diz respeito a como interpretamos o mundo e agimos sobre ele. Fazemos nossas contribuições e queremos ter certeza que os outros igualmente façam as suas. É assim que alguma unidade se torna possível, bem como o equilíbrio social derivado dessa unidade. Caso contrário, segundo Giubilini, colocaríamos em xeque a manutenção dos laços que mantém forte uma comunidade, cultura ou país. Em resumo, devemos exercer certa "autocoerção empática".
E, no Brasil atual, isso é possível?
Em condições normais de temperatura e pressão, como diriam os antigos, a tarefa já seria das mais ingratas. Somos herdeiros, desde a "doação" do território a um punhado de amigos do rei português, de uma tradição cultural que olha o espaço público com desconfiança, em que o sentimento de coletividade e de pertencimento a um grupo mais amplo, de cidadãos, com direitos e deveres iguais, é ainda bastante fluido. Importam mais as relações sociais do que a ideia da responsabilidade individual. Vigoram fortemente o "você sabe com quem está falando?", o "jeitinho", o "aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei", "farinha pouca, meu pirão primeiro", "pimenta nos olhos dos outros é refresco", a famosa "cervejinha" para a autoridade fazer vistas grossas a alguma infração da lei.
O espaço público só é valorizado quando apropriado privadamente, seja por cargos de confiança (confiança de quem, certo?) na administração pública, ou pela monopolização de uma quadra esportiva durante horas a fio por um grupo de amigos. Pensar o espaço público como um espaço compartilhado, cuja responsabilidade e usufruto é de todos, ainda é utopia. Falta a tal da empatia. É sintomático que esperamos o mal atingir a saúde de um parente ou amigo de uma autoridade pública para que medidas na área sejam tomadas em prol de toda a população. Afinal, "cada um sabe onde lhe dói o calo". Reproduz-se, então, a ideia de que as relações pessoais e a vida no espaço privado conduzem a atuação na indesejada e indesejável impessoalidade do espaço público.
Não bastasse esse nosso "ethos", o governo federal mostra-se totalmente insensível à situação de calamidade pública decorrente da pandemia. Desacredita órgãos internacionais, como a Organização Mundial da Saúde; incentiva o relaxamento do distanciamento social com o argumento de que a economia não pode parar, afinal, é uma "gripezinha" e se morrerem cinco mil velhinhos, lhes parece um preço razoável a se pagar; promete a cura por meio de um medicamento cuja eficácia não tem qualquer comprovação científica; não transmite à população informações essenciais na prevenção do vírus; não compra equipamentos de proteção aos profissionais de saúde, que atuam na linha de frente.
Exemplos da falta de empatia e responsabilidade moral do presidente da república no enfrentamento da pandemia abundam. Questionado por um repórter sobre as milhares de mortes de brasileiros, respondeu que não era "coveiro". Dias depois, uma repórter comentou que o Brasil havia passado a China em número de mortes, recebendo como resposta a seguinte pérola de insensibilidade e descompromisso ético: "E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre". O ministro das Relações Exteriores, que já afirmou ter sido o nazismo uma ideologia de esquerda, não fica atrás na perversidade ao comparar o isolamento social a campos de concentração.
É exatamente o oposto. Nossa casa é nosso porto seguro. Vocês, que estão nas ruas, são os soldados nazistas.
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