O vírus do egoísmo

A escola suspendeu as aulas por tempo indeterminado. Eu e Renata passamos a trabalhar remotamente, de casa. Naquela semana em que iniciamos o confinamento por conta da pandemia do coronavírus percebemos que a zeladora do nosso prédio continuava a trabalhar normalmente.  

Pedimos explicações ao síndico. Argumentamos que cada unidade poderia limpar seu respectivo andar. A resposta, na forma de perguntas, foi “Quem vai tirar o lixo das lixeiras e acondicionar corretamente para que o lugar certo (sic) leve todos os dias? Quem vai limpar as calçadas e os pátios, tirando os galhos de pinheiro e outras coisas, limpar os elevadores com álcool, portas e botões e trincos de acesso?”. Sugerimos um rodízio entre os moradores. Tratava-se, simplesmente, de ser solidário e empático com o semelhante, humano. Questão de humanidade.  

O síndico, então, colocou em votação nossa sugestão, acompanhada por outros poucos condôminos, esperando a manifestação dos demais. Foi sugerida, como alternativa à nossa, a manutenção do trabalho da zeladora em dias alternados, e que ela viesse de outra forma que não o transporte coletivo – aplicativo, vizinhos ou familiares, afinal, “a exposição é menor”. “Se vira nos trinta!”, como se diz por aí. Das 17 unidades que se manifestaram, apenas 3 foram favoráveis à suspensão do trabalho até a resolução da emergência sanitária. Dias depois, recebemos uma circular que definia a rotina a partir de então: 

“Em virtude dos procedimentos adotados pelas autoridades governamentais e de acordo com a opinião formada pela maioria dos condôminos, ficou decidido, com a anuência do nosso Conselho Fiscal, que, a partir desta data, nossa zeladora (...) os serviços prestados por ela será (sic) escalonado e com horário reduzido e maleável, que possibilite a locomoção em horários de menor pico, sendo a frequência em nosso condomínio dia sim, dia não, convencionados, segundas, quartas e sextas-feiras, até o final do regime de quarentena”.  

Fiquei matutando com os meus botões a irracionalidade da alternativa vencedora. Alguém terá de avisar ao vírus que nossa zeladora estará no ônibus tal no horário qual, para que ele lhe dê uma colher de chá e não a contamine. Não contamine a ela e as outras dezenas de pessoas com quem manterá contato nos vários minutos entre a casa e o trabalho. Como diria o Mané Garrincha, precisa combinar com os russos. Uma verdadeira roleta russa, acrescento eu.  

Revela-se, portanto, o pensamento elitista dessa classe média arrogante, boboca e cafona. A desumanidade, a maldade, a perversidade, o desprezo pelo bem-estar do empregado – afinal, teoricamente tão humano quanto o empregador – traveste-se de flexibilidade no horário de trabalho. É a covardia  de quem pede o fim da quarentena a bordo de carros de luxo, sabendo que a maioria dos trabalhadores tomara o transporte coletivo, arriscando suas vidas porque “a economia não pode parar”, a morte de cinco ou sete mil pessoas parece um preço razoável a ser pago pelo bem maior da nação.  

Lembrei-me que, durante o Brasil Império, a maior parte das casas não contava com banheiros, água corrente ou algum outro tipo de instalação sanitária. Por isso, os moradores das antigas cidades faziam as necessidades em penicos e outros recipientes de metal ou porcelana. Esses objetos ficavam sob as camas ou em armários até a manhã seguinte, quando eram esvaziados em grandes tonéis que comportavam todos os dejetos dos moradores da casa. 

Os grandes tonéis, por sua vez, eram carregados nas costas por escravos, que os levavam até o mar ou a algum rio e por lá os despejavam. Parte do conteúdo, que continha ureia e amônia, vazava dos tonéis e deixava marcas brancas sobre a pele negra, parecidas com listras. Por essa reação química, as marcas se pareciam com as do animal — daí o apelido em tom pejorativo dos "tigres" ou "tigrados". 

É sintomático desta mentalidade escravocrata que a preocupação inicial do síndico seja com o lixo. Mesmo depois de definida a manutenção do trabalho, uma moradora insistiu que “se a zeladora vai continuar vindo, por que precisamos mudar o esquema do lixo? Ela não pode colocar o lixo na lixeira externa nos dias em que vier trabalhar?”.  

Se a China não quisesse dominar o mundo, nada disso estaria acontecendo, né? 



Comentários

É meu amigo,´brabo. A minha ex-faxineira trabalha numa casa de carteira assinada, onde ela nunca tira os feriados, nem recebe por trabalhar nesses dias. Agora em tempos de corona, ela ainda está trabalhando, na casa onde ela trabalha tem um idoso de 90 e poucos anos...a filha nem com ele se importa. A Erô, mora com o marido que tem 65... tudo errado.

Isso tudo sem pagar o salário inteiro dela...triste ver que as pessoas não se colocam nunca no lugar das outras.