O vírus e o "lugar de fala"

Recentemente, comemorou-se o septuagésimo quinto aniversário da liberação do campo de concentração de Auschwitz pelas tropas aliadas. Eu escutava um programa de rádio quando, a respeito da comemoração, um ouvinte opinou que apenas judeus teriam direito de dizer o que é e o que não é antissemitismo, uma espécie de monopólio da verdade, acima do bem e do mal, com poderes supremos de acusação e absolvição do pensamento e comportamento alheios. Um tribunal da inquisição pós-moderno, às avessas, digamos assim.  

Esse episódio me fez lembrar de outro, ocorrido há poucos anos no metrô carioca. Uma mulher branca, para esconder a calvície involuntária decorrente do câncer, decidiu usar um turbante na cabeça. Foi acusada, por um grupo de mulheres negras que estava no mesmo vagão, de indevida “apropriação cultural”, afinal, o turbante seria um objeto de uso exclusivo de indivíduos cuja pigmentação da pele cruza determinada barreira cromática, critério peculiar, talvez inspirado na criminologia de Cesare Lombroso. Houve quem duvidasse da própria existência da doença da moça. 

Ambos episódios representam a ideia de que apenas os “nativos”, aqueles que se reconhecem e são reconhecidos como parte do grupo, têm legitimidade para falar sobre si ao mesmo tempo que definem a priori aquilo que os “outros”, os que estão além das portas da casa, além das fronteiras simbólicas do grupo, estão autorizados a pensar, falar e – no caso do turbante – usar, escrutinados segundo tal ponto de vista interno que se quer homogêneo, uníssono, unívoco, petrificado.  

Em nome do louvável e imprescindível respeito às diferenças que deve caracterizar uma sociedade multicultural, da afirmação de identidades historicamente marginalizadas, censura-se ou silencia-se aqueles que “não sofreram na própria pele” as agruras do preconceito, da exclusão, da perseguição e do aniquilamento. O “lugar de fala”, nestes casos, empobrece a noção de cultura, fetichizando objetos, diminuindo a capacidade do grupo pensar-se e repensar-se, reconstruindo sua identidade num incessante e infinito processo de significação e ressignificação, apropriação e reapropriação de elementos simbólicos. Ignora que o autoritarismo dos “guardiões da verdade” do discurso identitário é semelhante, embora com sinal inverso, daqueles que sempre lhes estereotiparam e estigmatizaram. A cultura bela porque é dinâmica, plástica, histórica, heterogênea, errante. 

A pandemia do coronavírus revelou que, no Brasil, ironicamente, a crítica ao “lugar de fala”, no esteio do relativismo antropológico, carrega em si seu próprio veneno. A verdade científica produzida pelas instituições de pesquisa e pela Organização Mundial da Saúde, cujas orientações são seguidas mundo afora, aqui são consideradas apenas mais uma opinião, uma crença tão legítima quanto a que professa que o vírus é uma vingança divina contra os homossexuais ou um produto de laboratório chinês para que o monstro comunista agarre o mundo com seus tentáculos. E que a solução está nas igrejas – que devem permanecer abertas porque são ambientes assépticos, sagrados, imunes ao contágio mundano - no jejum religioso e não nos tubos de ensaio.  

Sucumbindo à moda, diria biblicamente que “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Mas, humildemente, pergunto: qual verdade?  



Comentários

Telmo Kiguel disse…
Bela reflexão. Infelizmente, até agora, nenhum grupo discriminado, repito nenhum, tem interesse que a Ciência defina quem é o discriminador anti-semita, racista, etc. como é propugnado pelo Projeto Discriminação da Associação de Psiquiatria do RGS – APRS