Logo no início da pandemia, sugerimos que nosso condomínio concedesse licença remunerada à zeladora, preservando-a da exposição ao vírus. Afinal, a maioria de nós - se não todos - estava trabalhando remotamente, e não havia motivo para negar-lhe o mesmo direito à saúde.
Sugerimos um mutirão para a limpeza dos andares e outras ações cotidianas até que o período de isolamento social fosse revisto, embora, em Curitiba, nunca tenha havido uma determinação contundente do poder público que inibisse, inclusive legalmente, aglomerações e deslocamentos desnecessários. Entendíamos que o serviço de zeladoria não era essencial, naquele momento, e que o espírito de solidariedade, o senso de coletivo, de comunidade, de comunhão deveria falar mais alto.
Fomos voto vencido. Dos dezessete, apenas três - incluído o nosso – escolheu a empatia. A principal preocupação dos que votaram a favor da continuação do trabalho da zeladora era com relação ao lixo, quem ficaria responsável por recolhê-lo e levá-lo à caçamba externa ao edifício. Ficou decidido que, até segunda ordem, ela viria em dias alternados, como se o vírus escolhesse determinados dias da semana para invadir os corpos dos infelizes.
Recentemente, fomos surpreendidos com a notícia de que a zeladora voltou a trabalhar todos os dias da semana. Ontem, o síndico escreveu uma mensagem aos condôminos informando que ela havia sido liberada por estar "muito gripada", com a sugestão de ir ao posto de saúde. Pouco depois, ele mesmo encaminhou a foto do atestado médico, concedendo-a dez dias de dispensa por motivos de saúde. Questionei-o sobre o diagnóstico, não soube me responder, limitando-se a dizer que, segundo a própria zeladora, não era coronavírus, embora o exame específico que pudesse confirmar ou descartar a contaminação não houvesse sido realizado.
Os condôminos, geralmente bastante ativos e cheios de argumentos quando o assunto é o lixo, desta vez, dormiram em berço esplêndido. Silêncio absoluto. Nenhuma manifestação de solidariedade pela pronta recuperação da zeladora, à exceção de uma moradora preocupada com a entrega da correspondência, atividade que exige, aparentemente, doutoramento. Egoísmo, individualismo, arrogância, prepotência e uma abominável e incurável Síndrome da Casa Grande que acomete parte da classe média.
Ainda me recuperando de tamanha insensibilidade ao bem-estar alheio, tomo conhecimento que um grupo de mães de colegas do meu filho vem organizando encontros num parque perto de casa, aos finais de semana, "mortificadas" pelo isolamento das crianças - as crianças estão numa boa, diga-se passagem -, ignorando ou fingindo ignorar que o uso de máscaras não é salvo-conduto para passeios ao ar livre, tampouco o distanciamento social, no estágio em que nos encontramos, sendo garantia de segurança para si e para os outros que nos circundam. Uma mãe, inclusive, professora universitária com doutorado e um monte de artigos publicados em revistas cientificas, "aproveitando o recesso escolar" - a escola resolveu antecipar as férias de julho para a segunda quinzena de maio - resolveu viajar com o filho.
O mais apavorante nisso tudo é a constatação de que essas pessoas que escolhem, voluntariamente, arriscar-se a si e aos outros, não vivem isoladas numa caverna. Todas têm acesso à uma quantidade gigantesca de informação. Todas têm consciência da responsabilidade individual na contenção da pandemia, mas essa consciência não é suficiente para que ajam responsavelmente. É como se pulsasse dentro de si um desejo incontrolável de autoflagelar-se e infligir o mal a quem está a sua volta. O instinto de sobrevivência substituído pela pulsão de morte.
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