Meu malvado favorito


Foram praticamente dez horas de viagem do Rio de Janeiro para Curitiba, passando por dentro da cidade de São Paulo e seu trânsito caótico. Paramos apenas para fazer xixi e beber água. Nossos três gatos vieram junto. A mais velha, a Guadalupe Francisca, sofreu um bocado, começou a babar e a respirar de modo ofegante no meio do caminho. Temi pelo pior, mas acabou sã e salva. O resto da mudança já havia chegado a nossa nova casa. 

O motorista que me trouxe era mais um dentre milhares de outros “nano-empresários de si mesmo”, termo acadêmico-pernóstico referente a motoristas de aplicativo, nome bonito que esconde a precariedade das relações de trabalho e mascara a utopia do empreendedorismo, do “self-made man” que vence na vida por esforço próprio sem depender de ninguém. Era extremamente simpático, praticamente não parou de falar durante todo o trajeto, escrevendo sua biografia para um desconhecido. Talvez, refletindo retrospectivamente, tenha confundido expansividade com simpatia.  

Pouco tempo antes das eleições presidenciais, recebeu-nos em sua casa para um churrasco. Já havia demonstrado ódio virulento aos “petistas”, brincando (?) certa vez que os atropelaria caso passasse por alguma greve. Logo ele, um mero proletário que “come mortadela e arrota caviar”, incorporando no discurso uma visão de mundo que não lhe pertence, bastante comum no “andar de baixo”, como diz o Elio Gaspari. Uma espécie de identificação social vertical com o subordinado tomando a projeção social do chefe, uma capa de sua própria posição inferior. É a senzala fingindo-se Casa Grande.   

A certa altura, e não me lembro por que cargas d’água o assunto derivou para a política, eu o questionei sobre o voto em Bolsonaro, e ele reagiu intempestiva e repetidamente que sim e que não queria saber ou ouvir outra opinião e que não lhe interessava mais nada, embora não soubesse elencar nenhuma ação a ser tomada pelo então candidato em qualquer área além do onipresente “combate à corrupção” e, vagamente, a diminuição de impostos. Também disse que “viado” não entrava em sua casa.  

O clima azedou, constrangimento geral entre os outros convidados. Reconheço que não deveria ter puxado o assunto, até então ele havia sido um bom anfitrião e eu, um bom convidado. Se fosse na minha casa, aí sim, teria o direito sagrado de externar a opinião que bem entendesse, mas, na casa alheia, a estória é outra. Não se trata de exercer o direito à liberdade de expressão, e sim de compreender que, em determinadas situações, especialmente em “território inimigo”, manter a civilidade significa calar-se caso não haja abertura para o debate.  

Desde então, sua personalidade expansiva, inicialmente tomada por simpatia, revelou-se verbalmente agressiva e intelectualmente medíocre. Com o inverno batendo às portas, mostrou-se ressabiado com a vacina contra a gripe, acreditando que ela possa, não nos proteger, mas causar a doença. Sugeriu também à filha que clareasse os pelos dos braços e das pernas, em tom alourado, “porque é bonito”, numa demonstração inequívoca de baixa autoestima e desprezo por sua herança fenotípica indígena e africana.  

No grupo de WhatsApp, repete como um mantra que “a Globo é um lixo”, que “isso a Globo não mostra”, demonstrando total ignorância à própria história da emissora, tomada equivocadamente por “comunista”. Às vésperas do Dia Internacional da Mulher, publicou um vídeo asqueroso e desonesto onde uma mulher explicava o porquê de precisarmos do machismo – claro, tinha que ser uma mulher para dar um verniz de legitimidade ao discurso, afinal, representa o “lugar de fala” feminino.  

Com a chegada do coronavírus ao Brasil, divulgou o vídeo de um empresário bem sucedido – sucesso econômico, sem dúvida, se é isso que define a decência de um ser humano - em que se defende o “isolamento vertical”, ou seja, apenas de idosos e crianças, deixando o resto da população trabalhar, afinal, a economia não pode parar e, se morrerem cinco ou sete mil, faz parte do jogo, como disse outro empresário bem sucedido.  

O isolamento social vertical, como se sabe, foi abandonado pelos países que o tomaram inicialmente como resposta à pandemia por não ter comprovação científica de sua eficácia. Na descrição do vídeo, acusa-se de “politicamente correto” quem pensa diferente, dentre os quais a Organização Mundial da Saúde e seus pesquisadores e especialistas. Deve participar das carreatas “a favor do Brasil”, pela abertura do comércio, mas de máscara, claro, porque até a burrice tem limites.  

No dia 31 de março, quando “descomemoramos” o golpe que implantou a ditadura militar em 1964, meu “malvado favorito” pediu “Intervenção Já” e fechamento do Supremo Tribunal Federal. Tudo isso escrito em letras maiúsculas, garrafais, de modo a não deixar dúvidas sobre sua hombridade. Orgulha-se da própria ignorância, é um idiota porque os idiotas não sabem que não sabem e, por isso, se dão a liberdade de opinar sobre qualquer coisa porque tudo virou uma questão de opinião.  

Ele tem raiva, muito raiva. Ele odeia. Reconhece, lá no fundo, sua incapacidade de compartilhar ambientes intelectualmente estimulantes porque não foge de lugares-comuns. É simplório e vulgar. Adora a constância e a impenetrabilidade da pedra, como ensina Sartre. Extravasa sua intolerância sem amarras morais porque vê, no governo atual, um igual que lhe respalda, inicialmente, a violência simbólica do discurso. Seu ressentimento alimenta-se do desejo de vingança. Das mulheres, que precisam do machismo. Dos homossexuais, que não são bem-vindos. Dos negros, que deveriam saber o "seu lugar", cuja cor é símbolo de vergonha. Impotente e incompetente, caça bodes expiatórios por sua condição miserável. 

Ele, quem sabe, é um bom pai, um bom marido, um bom filho. É, ao menos, um bom motorista de aplicativo, não cometeu nenhuma “barbeiragem” no trânsito entre o Rio de Janeiro e Curitiba. Mas o general Jorge Rafael Videla, um dos facínoras que governou a Argentina durante a ditadura militar do país vizinho, também devia ser um cidadão acima de qualquer suspeita. Avô amoroso, católico que ia à igreja todos os domingos antes de almoçar raviólis com a família no aconchegante apartamento num bairro de classe média em Buenos Aires. 

Quem vê cara, não vê coração. 







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