Recentemente, o deputado federal Marcelo Freixo escreveu um artigo na Folha de São Paulo, conclamando o campo democrático a abrir mão de projetos pessoais e partidários e superar diferenças na defesa de algo maior: a vida, os direitos e a democracia, "ameaçados pela dupla tragédia do fascismo e da pandemia". Freixo aponta que, apesar de todas as barbaridades, o presidente da república é aprovado por cerca de 25% do eleitorado e mantém uma base fanática, que o apoia incondicionalmente, de aproximadamente 10% dos brasileiros. Daí, conclui, a urgência de um projeto de reconstrução nacional, que abra espaço a todas as lideranças e que seja capaz de superar o projeto autoritário bolsonarista.
Freixo não cita explicitamente, mas, imagino que inclua no campo democrático aqueles que se dizem "arrependidos" de haverem escolhido, nas eleições presidenciais, um candidato que é o oposto do preconiza os defensores do Estado Democrático de Direito. Imagina-se, por exemplo, que muitos desses "arrependidos" estejam abrigados em movimentos surgidos nas redes sociais, como o "Somos 70%".
O arrependimento é uma virtude, deve ser louvado e reconhecido. No entanto, é possível atribuir-lhe uma gradação moral. Senão, vejamos o caso de uma personagem fictícia, o João Ninguém.
Antes de sair para o trabalho, João vê no telejornal que a previsão do tempo indica chuva forte a partir do meio da manhã, continuando por todo o dia. De fato, ao olhar pela janela, verifica que as nuvens estão carregadas, cinzentas, mal-humoradas. Sua esposa, ao perceber que não levo guarda-chuvas, chama-o de teimoso e imprudente, lembrando que, no final da tarde, terá de buscar seu filho na escola. Ignora a recomendação e sai desprevenido. No meio da manhã, desaba um temporal, que só vai parar no dia seguinte. Chega "ensopado" à escola, apesar de ter conseguido, a duras penas, um táxi. Se arrependimento matasse...
Embora faça parte do que poderíamos chamar "classe média intelectualizada", esclarecida, liberal, que valoriza a diversidade cultural e sexual e não abre mão de viver num regime democrático regido pela Constituição Cidadã, João Ninguém decide consciente e voluntariamente eleger um candidato que prega exatamente o oposto de suas crenças, refletindo preconceito de classe e defesa de interesses particulares, jogando para escanteio o que temos de mais valioso, a liberdade de expressão e o respeito às diferenças. Escolhe, de bom grado, rifar a democracia, "tudo, menos o PT". Percebe, entretanto, que o tiro saiu pela culatra, que a pimenta que ardia somente nos olhos dos "comunistas", "subversivos" e "maconheiros", passou a arder nos meus. Desemprego, retirada de direitos trabalhistas, reforma da previdência, denúncias de corrupção e envolvimento com o crime organizado - "mas, e o Lula ladrão!" -, a "gripezinha". Se arrependimento matasse...
Se João sai sem guarda chuvas, o problema é dele. Quem vai se molhar e correr o risco de pegar um resfriado, uma gripe, uma pneumonia, é ele. O alcance de sua estupidez é mínimo. A responsabilidade, ou melhor, a irresponsabilidade pessoal não afetará muito mais do que seu círculo familiar mais íntimo, embora reconheça que o clima em casa azedaria por não haver seguido o conselho matrimonial. Por outro lado, o "erro de avaliação", como num cálculo racional de custo-benefício, na legitimação de um governo que despreza a democracia, embora se considere democrata, impacta a vida de dezenas e mais dezenas de milhões de concidadãos. A sua responsabilidade é, aqui, coletiva, reflete uma postura ética, consigo próprio e com o outro.
A esses arrependidos por esse tal "erro de avaliação" devemos estender a mão, que ótimo que "caíram em si", que bom, bem-vindos ao clube. É como aquele velho ditado, "cavalo dado não se olha os dentes", embora também seja verdade que o inimigo do meu inimigo não é, necessariamente, meu amigo. A mancha moral, como um estigma perpétuo, permanecerá, porque a defesa da democracia não pode ser condicionada por nada, nem mesmo pela esperança de que, em nome dela, devamos suportar um projeto de ditador. Com ela, não se transige. Estes arrependidos são democratas circunstanciais, de ocasião, sempre a postos a legitimar aventuras autoritárias. Não agiram ingenuamente, muito menos foram ludibriados, enganados ou sofreram "estelionato eleitoral". O jornalista Arnaldo Bloch escreveu em sua página do Facebook algo mais ou menos nessa linha.
"Vejo como muitos comentaristas e jornalistas julgaram que Bolsonaro seria um fardo, mas nada que se comparasse com o que se tornou. Esse argumento serve para purgar a culpa de terem calculado que Jair Messias seria mais uma pinguela no caminho para o país livrar-se do "lulopetismo". Quem diz isso ou é tão ingênuo quanto os que não viram em Collor um risco, ou está em grave autoengano ou, mais provável, está sendo deliberadamente desonesto e mentiroso. Eu, que, repito, não sou clarividente, sempre vi com clareza que Bolsonaro seria tudo aquilo que anunciava, e mais ainda, até o limite da perversidade e o rompimento da ordem moral, institucional e constitucional. Se Bolsonaro tem um mérito, é o de nunca ter escondido suas putrefatas intenções, visões, opiniões. (...) Eu, que não sou clarividente, vou um dia morrer sem ter essa mancha na consciência, o que vale mais do que qualquer posição de conforto"
Eu também, querido Arnaldo. Eu também.
Artigo de Marcelo Freixo:
Publicação de Arnaldo Bloch:
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