Acabo de ler "Destinatário desconhecido", novela escrita em 1938 pela jornalista Kathrine Kressmann Taylor. Ela narra a relação de dois amigos que emigram para a Califórnia, fugindo dos longos anos de penúria que se abateram sobre a Alemanha após a derrota na Primeira Guerra Mundial. Querem fazer fortuna com uma galeria de arte. Tudo corre às mil maravilhas, os negócios prosperam e a família de Martin Schulse acolhe calorosamente o judeu solteirão Max Eisenstein, até decidir retornar à terra natal.
Em novembro de 1932, Martin e Max começam a trocar correspondências. A Alemanha está em convulsão social, às vésperas das eleições que levarão Adolf Hitler ao poder. "Quem é esse tal de Adolf Hitler que parece a um passo do poder aí na Alemanha? Não gostei do que li sobre ele", pergunta com certa apreensão Max, em carta de 21 de janeiro de 1933. Tropas de assalto nazistas semeiam o terror nas ruas e têm início as perseguições aos "degenerados", dentre eles, os judeus. Fala-se num Terceiro Reich, destinado a durar mil anos.
Martin Schulse instala-se numa casa luxuosa em Munique, gozando de todo o conforto que os dólares ganhos em São Francisco lhe permitiam. O novo regime passa a cortejá-lo, e ele deixa-se seduzir. "Sou agora um funcionário do novo regime, e exulto em alto e bom som. Todos os funcionários que têm amor à pele se juntaram rapidamente aos nacional-socialistas. É esse o nome dos partidários de Hitler". Ele reconhece que os judeus são intimidados e suas lojas, saqueadas, mas acredita que "essas sejam coisas secundárias, a espuma que se ergue quando um grande movimento borbulha".
Cada vez mais aflito com as notícias que chegam da Alemanha, o acirramento do sentimento antijudaico, Max pede a Martin que proteja sua irmã, uma atriz que iria se apresentar em Berlim. Martin responde que as correspondências devem cessar de uma vez por todas, "continuar a trocar cartas com um judeu é impossível para mim", decreta. A conversão à ideologia nazista estava completa:
"A raça judia é uma chaga aberta em qualquer nação que a acolha. Jamais tive ódio ao judeu como indivíduo - você mesmo sempre foi um amigo para mim, e sabe muito bem que sou sincero ao dizer que sempre gostei de você, não por causa de sua raça, mas apesar dela. O judeu é o bode expiatório universal"
Max continua escrevendo para seu outrora amigo. O teor das cartas dava, propositadamente, a impressão de que a relação de amizade dos dois permanecia mais forte do que nunca, o alemão ariano e o judeu alemão fraternal e emocionalmente unidos por afinidades intelectuais e profissionais. O "bode expiatório" sabia que as cartas eram censuradas pelo regime.
"Deus meu, Max, você sabe o que está fazendo? (...) Aquele telegrama maluco! As cartas que você tem me mandado! Fui chamado para dar explicações. Eles não entregam as cartas, mas me chamam, mostram as cartas e exigem que eu lhes forneça o código. Código? Como você, um amigo de tantos anos, pode fazer isso comigo? Você não percebe, não vê que está me destruindo? (...) Sabe o que significa ser levado para um campo de concentração? Você me colocaria contra um muro e apontaria a arma?"
Max ainda envia algumas cartas, mas, não obtém resposta. O destino do recém-convertido aos ideais nacional-socialistas já havia sido traçado. A vingança é um prato que se come frio, diz a sabedoria popular.
A novela de Kathrine Kressman Taylor foi encenada no Brasil em 2005 com o título de "Triunfo silencioso". Eu tive o privilégio de assisti-la no teatro do SESC Copacabana, testemunhando as brilhantes atuações de Herson Capri, no papel de Martin Schulse, e Edwin Luisi, no papel de Max Eisenstein. À época, o crítico teatral da Folha de São Paulo, Sergio Salvia Coelho, após defini-la como "peça obrigatória", escreveu que "sessenta anos depois do final da Segunda Guerra, o ovo da serpente da intolerância e do fanatismo está sempre pronto para ser chocado". E ele tinha razão.
Quantos de nós não conhecemos parentes, amigos e colegas de trabalho, verdadeiros "cidadãos de bem", que se deixaram seduzir pelo discurso da "limpeza moral" usado pelo atual presidente da república? O "judeu" de ontem é o "comunista" e o "petista" de hoje, um câncer que precisa ser extirpado do corpo nacional enfermo. Uma "espuma que se ergue quando um grande movimento borbulha", como nos ensina Martin. O nacionalismo xucro é apenas um indesejável, embora inevitável, dano colateral da quimioterapia.
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