Odores

 

Estava na cozinha lavando a louça acumulada do dia anterior. O calor naquele dia era bem desagradável, água morna saindo da torneira. Miguel chega perto, sem camisa, branquelo como um dileto filho de imigrantes ucranianos (bom, ele é um dileto bisneto de imigrantes judeus poloneses, que se desviaram do caminho austral e tropeçaram nas praias cariocas), levanta os braços e pede que eu “cheire”. Na minha ingenuidade e nostálgico de um tempo em que cheirá-lo era fonte de regozijo, aquele cheirinho de neném recém-saído do banho, o talco Johnson e o Hipoglós, aproximo meu nariz do sovaco e imediatamente, num reflexo digno de um lutador de caratê, dou um solavanco para trás. O cheiro emanado daquela parte do corpo era inenarrável, um provável constrangimento caso estivesse na presença de desconhecidos. Na minha presença, contudo, e azar o meu, rendeu apenas umas gargalhadas sádicas. Não sabia se me orgulhava do filho púbere, orgulho do pai que vê o filho crescer a olhos (e narinas) vistos ou a melancolia de imaginá-lo passando vergonha naquele dia em que o desodorante acabou. 


Eventualmente, Miguel pede para dormirmos juntos, especialmente quando a mãe está fora, uma espécie de complexo de Édipo às avessas. Devidamente ajeitados debaixo das cobertas - sim, em Curitiba, o friozinho da noite compõe a paisagem durante todo o ano, pode dar as caras em pleno janeiro - pede para fazermos "conchinha". Até aí, tudo muito bem, tudo muito bom, pai e filho estreitando laços e construindo memórias. O busílis é que, pela manhã, ao acordarmos, quando ele abre a boca, antes de escovar os dentes ou tomar o leite com Toddy, o bafo é de gente grande e isto não é um elogio ao desenvolvimento físico-esofágico da criatura. Assim como no episódio do sovaco, o pré-adolescente solta uma gargalhada, o que só piora a situação porque a gargalhada só existe com a boca aberta e, uma vez aberta, abertas estão as portas do inferno odorífico.


Mas, sim. Por piores que sejam os cheiros do sovaco e da boca do Miguel, eles já fazem parte do anedotário e memória familiares. Transformados, então, numa linguagem familiar, um léxico bastante particular que apenas os iniciados têm acesso, servem para estreitarmos laços afetivos e, claro, serão devidamente usados como um trunfo em momento oportuno, quem sabe naquele lanche de domingo com a/o companheira/o da vez. Ele vai se levantar da mesa, vai nos xingar e, depois, todos rirão.


Cheiro e afeto.


Meu avô materno fazia a barba com pincel e gilete. Com o rosto limpo – nunca o vi minimamente cortado, ao contrário do desastre estético protagonizado pelo neto, invariavelmente todas as vezes que teima em não usar a máquina de barbear – sempre passava a famosa “after-shave”, uma colônia pós-barba chamada “Aramis”, importada, trazida das viagens ao exterior. Escrevo essas linhas e o cheiro agradável e a maciez de sua pele de bebê – ironia das ironias - me volta à lembrança e a saudade do vovô David também.


Sinto o cheiro da camisa do meu pai, suada, ao voltar do trabalho. Eu ia recebe-lo na porta de casa quando ouvia seus passos descendo as escadas do corredor. Engraçado, não era um suor fedorento, era um cheiro indefinido embora não desagradável, e eu, hoje, fico imaginando o seu dia-a-dia flanando pelas ruas do centro da cidade do Rio de Janeiro lá pelos anos oitenta e início dos noventa.


Sinto o cheiro do Rio de Janeiro quando desembarco no Santos Dumont, um cheiro quente e úmido– existe isso?


Sinto o cheiro da maresia que te estapeia em Copacabana.


Sinto o cheiro das roupas da Renata que ela deixa em cima da cama ou do seu pijama amarfanhado embaixo do travesseiro.


Dizem que nós somos o que comemos. Eu concordo plenamente com tal afirmação, mas, gostaria de completa-la dizendo que nós também somos o que cheiramos. Agora, deem-me licença porque os gatos inundaram a caixa de areia com litros de xixi e o cheiro, amigos, não é nada agradável...



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