Eu não sou caetofóbico

 

Lá pelos meus onze ou doze anos ou algo por aí (ah, a traíra da memória!) surgiu uma pelugem abaixo do nariz. Não era esteticamente desagradável aos olhos de quem vinha de lá para cá, embora não fosse, tampouco, uma obra de Michelangelo. Muitos a chamam, pejorativamente, de “bigodinho de porteiro”, acusação que mereceria dedicada etnografia urbana para efetiva comprovação antropológica. Como não poderia deixar de ser, os colegas da escola me tomaram por “pele” (ainda se usa este termo?) e, a partir de então, passaram a me chamar de “penugem”, com a letra “ene” mesmo, tal qual uma ave de nossa riquíssima fauna.

Tentei convencer meus pais a tirar os pelos intrusos, mas ouvi que, uma vez iniciado o ritual do barbear, era uma viagem sem volta, o matinho se transformaria num matagal denso e portentoso. O jeito era aguentar pacientemente as piadas, que não eram tão debochadas quanto aquelas do dia em que apareci com óculos de armação azul voluntariamente escolhidos. Um colega estacou à minha frente, sério, e, segundos depois, desatou em incontrolável gargalhada. Bons tempos.

Indivíduos com excesso de pelos têm sido alvo, em passado não muito longínquo e nos dias que correm, de intensa campanha difamatória e estigmatizante. São considerados sujos e mal lavados, de pouco asseio, desleixados. Já fui “acusado” de mendigo por um pré-adolescente por estar com a barba por fazer. À exceção, talvez, dos nadadores profissionais que raspam o corpo para evitar, ao máximo, o atrito com a água no intuito de aumentar a rapidez do deslocamento, não há um argumento sanitário objetivo que justifique a ojeriza a pelos, cabelos e congêneres.

Houve um treinador da seleção argentina de futebol que, nos anos 1990, exigiu que seus comandados cortassem o cabelo à maneira militar. Um dos melhores jogadores à época, Gabriel Batistuta, sucumbiu à pressão e jogou no lixo as longas madeixas. Cabelos longos e barba volumosa foram – e, sejamos honestos, ainda são – representação simbólica do que é considerado subversivo, errado, fora do lugar, poluído, impuro, marginal. No mundo corporativo, dificilmente vemos um alto executivo com a barba por fazer (o mesmo vale para tatuagens, até onde sei). A barba feita, quer dizer, o rosto sem barba, é sinônimo de seriedade, competência e responsabilidade. Vem-me à cabeça que o ex-presidente Lula, por exemplo, é conhecido, dentre outros apelidos não muito glamorosos, por “sapo barbudo”. E há quem associe o excesso de pelos no corpo aos primatas, recusa à evolução (!) da espécie.

Não faltam clínicas que prometem o fim do incômodo, oferecendo depilação definitiva a laser, devolvendo ao indivíduo o eterno corpo adolescente. Há quem goste, ao que tudo indica. Meu filho, quase treze anos, ostentando braços e pernas cobertos já por generosa camada de pelos, já nos informou que lhes travará luta incessante, doa quem doer (ele, obviamente), para desgosto da mãe, fã incondicional de homens peludos, sorte a minha, esqueçam os que brotam das orelhas e do nariz, ninguém é perfeito.

Mas o cabelo merece tratamento especial, é o primo rico.

 

Minha avó materna usava peruca, eventualmente. Lembro-me de vê-las acomodadas em porta-perucas, louras e lustrosas. A passagem dos anos estabeleceu um fosso entre a imagem refletida no espelho de então e a fotografia em preto e branco emoldurada no quadro da saleta do telefone, uma moça jovem, bonita, em trajes de esqui, cabelos longos, no final dos anos 1930 na então cidade de Sasow (hoje, Ucrânia), curtindo o inverno antes de estourar a Segunda Guerra.

Olho-me no espelho e percebo, paulatinamente, o inclemente e inexorável desmatamento por ambos os flancos da testa. A Renata tampouco me ajuda a absorver o impacto negativo da genética familiar, talvez parente do Ricardo Salles, quando, vez por outra, ao observar o rareamento capilar, apenas exclama “Marcelo!”, e eu já sei do quê se trata. A condoída cabeleireira, ao finalizar mais um corte, espelhando o cocuruto para a minha avaliação, e diante do muxoxo, nega peremptoriamente o inevitável. “Não, isso é só o redemoinho. Tem muito cabelo na sua cabeça!”. Agradeço a gentileza.

Dia desses, voltando da escola com o Miguel, passamos por um cartaz que anunciava transplante capilar. O pequeno detalhe é que o sonho da cabeleira eterna é na Turquia, uma nova modalidade de turismo bastante promissora. Entre kebabs e baklavas, a autoestima de volta.

Istambul, aí vou eu!



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