A professora havia indicado um vídeo no Youtube que
explicava, de maneira bastante didática, na linguagem adequada à faixa etária,
a partilha do território brasileiro (que ainda não era brasileiro) em
capitanias hereditárias. O jovem historiador descrevia fatos históricos, como
não poderia deixar de ser e, a partir dali, sugeria que a distribuição de
terras aos amigos do rei português foi o embrião da luta pelo direito à moradia
e pela reforma agrária.
Estranhamente, dias depois, a professora envia aos
pais um pedido formal de desculpas por haver se “confundido” com o vídeo a ser
compartilhado com os alunos, com linguagem supostamente inadequada, argumento
diametralmente oposto e na direção contrária à forma como julgamos a sugestão,
perfeitamente adequada e esclarecedora sobre a formação social e política
brasileira, a mistura maléfica entre espaço público e espaço privado,
interesses coletivos e particulares, aos amigos tudo e aos inimigos, a lei. Era
um ponto de partida interessante, quem sabe atiçaria a verve historiadora ou
antropológica de um ou outro, um futuro Roberto Da Matta e sua magistral
análise do “Você sabe com quem está falando?”.
O então coordenador
pedagógico, ao ser questionado sobre o porquê de tanta celeuma sobre a
narrativa de uma banalidade histórica - tanto quanto afirmar que a terra é
redonda ou que vacinas nos protegem de vírus mortais-, revelou que alguns pais
procuraram a escola bastante preocupados com a saúde mental dos filhos,
expostos à terrível “doutrinação socialista” do tal historiador do vídeo. Pois
sim, o malefício da colonização por exploração imposta pelos portugueses e do
fatiamento do território para meia dúzia de afortunados reais era uma simples questão
de opinião. Incitava-se, desde tenra idade, ao terrorismo agrário, aquele bando
de desocupados que vivem de invadir terras de gente que trabalha e faz o Brasil
avançar, o agro é pop. Quer moradia digna? Vai pra Cuba.
Descem as cortinas. Sobem as cortinas.
Sábado pela manhã, no auditório da escola. Reunião de
pais, início de mais um ano letivo. A orientadora pedagógica do segmento perde
uma hora de seu tempo (e do nosso) declamando regras de vestimenta, de horário
e fórmulas matemáticas para a média trimestral. A pontualidade é fundamental e
deve ser exigida desde cedo, afinal, no dia da prova do vestibular para a
Universidade Federal do Paraná, um minuto de atraso joga no lixo anos de
preparação. Detalhes técnico-burocráticos que um manual do aluno resolveria e
nos liberaria para assuntos mais interessantes, como fazer a feira (eu adoro
fazer a feira de sábado), correr meus 15 quilômetros em direção ao Parque São
Lourenço ou simplesmente sentar no meio-fio e beber uma cerveja gelada.
O único momento em que a apresentação enfadonha nos
chamou a atenção foi quando surgiu, na tela, a quantidade de aulas por
disciplina. A fala, em tom protocolar, não evitou que percebêssemos a
desvalorização da História enquanto disciplina formadora da cidadania e
antídoto contra o revisionismo. Duas aulas semanais. O mesmo que Educação
Física, menos que a língua inglesa. Estava pronto para questionar os critérios
que a escola utiliza na definição da quantidade de tempos de aula para cada
disciplina (orientação do MEC?), mas nossa paciência foi embora antes.
Jactando-se de seus “26 anos de magistério”, a
palestrante afirmou, entre risos, que os alunos do turno da tarde, via de
regra, dão mais trabalho aos professores e demais funcionários porque são,
biologicamente, mais agitados que os alunos do turno da manhã. Sem qualquer
embasamento científico acabou, involuntariamente (será?), estereotipando e
estigmatizando um monte de crianças cujo comportamento inadequado, sem dúvida,
tem menos a ver com genética e mais com relações afetivas envolvendo família e
amigos, por exemplo.
A educadora tomou o caminho mais fácil – e perigoso –
de reduzir o social ao biológico, legitimando um discurso que, historicamente,
nada de bom nos trouxe e continua fazendo estragos. Taí o aumento de 270% de grupos
neonazistas no Brasil nos últimos três anos que não me deixa mentir. No
entanto, pela reação da plateia, às gargalhadas, a fala foi um sucesso. Para
nós, foi a gota d´água. Levantamo-nos e saímos.
O desprezo pela História abre espaço para platitudes
como essa do comportamento definido pela biologia. Permite que afirmações do
tipo “nazismo é de esquerda”, “a terra é plana”, “vacinas matam”, “não houve
ditadura no Brasil”, “feminismo é coisa de mulher mal amada”, “não existe
racismo no Brasil”, “a culpa é dos imigrantes”, “a Rússia é comunista” sejam
tomadas a sério por muita gente que se informa pelas chamadas fakenews que
circulam rapidamente através das redes sociais. Vivemos, hoje, rodrigueanamente, a “explosão
triunfal dos idiotas” que dominam a cena embriagados por sua “onipotência
numérica”.
O ótimo Antônio Prata toca nesse assunto em sua mais
recente crônica na Folha de São Paulo. Lembra-se de seus colegas que “tocavam o
terror”, fazendo o sucesso esperado entre os que sentavam no “fundão” da sala.
Eram idiotas com data de validade, obrigados a mudar o comportamento com a
chegada da vida adulta. Hoje, não.
"Um idiota que derruba a luz da escola ou é capaz de performar uma higiene bucal intracraniana ganha destaque nas redes, vira celebridade com um podcast ou é contratado pela televisão. Taí um inconveniente, não exatamente pequeno, de termos substituído o debate racional baseado em fatos e argumentos pela audiência. Enquanto continuarmos a dar voz não a quem tem o que dizer, mas a quem faz mais barulho, a inteligência seguirá sendo calada pelos arrotos".
Meu filho gosta de sentar na frente. Ufa!
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