Xô, carioca!

Naquele final de tarde, fazia calor. Fui pegar o Miguel na escola trajando bermuda e chinelos, a barba por fazer. Um colega de turma comenta, em tom debochado, que eu parecia um mendigo daquele jeito. O comentário, claro, não foi feito na minha frente. Havia ali, subjacente, um preconceito de classe explícito e a associação entre indumentária, poder econômico e moral. O mendigo é um desajustado, um desonesto, um indecente, um marginal e, no fundo, um criminoso. Um não-cidadão. O estigma simbolizado na vestimenta e no asseio (ou falta de) do rosto. Assim, se eu tivesse ido buscá-lo de terno e gravata e a "cara limpa", mereceria o respeito e a admiração do colega, quem sabe estivesse diante de um empresário "bem sucedido" ou, até, um procurador da república. 

Tempos depois, um sábado de manhã, fazendo a feira semanal, cruzei com um rapaz que usava a camiseta do Flamengo, bermuda e chinelos. Eu estava de bermuda, chinelos e camiseta sem manga. Ele falava com a companheira, e o sotaque era inconfundível. Concluí, com meus botões, que a indumentária nos identifica, nos irmana enquanto cariocas, já que não é comum observarmos curitibanos na "moda verão" mesmo no verão, e que o comentário do colega de sala, para além da estupidez classista, tocou fundo numa parte meio adormecida desde que vim morar na capital paranaense.

Durante quarenta anos nunca questionei minha carioquice da gema. Eu simplesmente era, com um fato objetivo, um dado da realidade, intranscendente, inexorável e impenetrável como a pedra mais dura. Até refletia sobre esse tal jeito de ser carioca, suas características, mas parava por aí, uma questão de conteúdo e não de forma. Estava confortável no mundo mundinho, familiarizado com os saberes e fazeres da comunidade imaginada, a minha ilha, a Praça São Salvador, o Largo do Machado, a Lapa, Copacabana, Leme, o sotaque. 

Apesar de toda a teoria e toda a racionalidade e objetividade científica necessárias ao exercício de antropólogo, que precisa estranhar o familiar e familiarizar-se com o estranho, tenho a impressão de que não fiquei imune ao etnocentrismo, como um típico nativo, à crença de que o "nós" somos nós e o "eles" são os outros, os diferentes, a gente com hábitos peculiares, esquisitos, extravagantes, esdrúxulos, excêntricos, exóticos, selvagens, pitorescos. Mas nada como um dia após o outro ou, como diz a sabedoria popular, "um dia da caça, outro do caçador". Ponha-se no seu lugar, Marcelo!

Num muro perto de casa, a seguinte frase o emporcalhava: "O Greca (Rafael, prefeito de Curitiba) entregou o comércio para o crime organizado de nordestinos". Imediatamente, o estratagema fascista do bode expiatório me embrulhou o estômago. Nunca havia lido, num espaço público, algo tão explicitamente xenófobo. Coloquei-me, imediatamente, no lugar dos "nordestinos", herdeiro que sou de imigrantes judeus obrigados a abandonar o lar (ao menos, o lugar que assim o consideravam) pela intolerância e ignorância daqueles incapazes de viver num mundo diverso, plural. Hoje, nordestinos. E amanhã? Cariocas. Aliás, "o carioca" é como um outro colega do meu filho a ele se refere, para terceiros, em tom pouco lisonjeiro. 

Como diz minha companheira, "se fere minha existência, serei resistência". Na pequena varanda de nosso apartamento, aproveitando o simulacro de sol da praia de Copacabana, ouço os baluartes do samba e do pagode raiz - Alcione, Beth Carvalho, Clara Nunes, Jorge Aragão, Benito Di Paula. Nem o samba nem o pagode faziam parte de meu gosto musical, mas, vai entender, olhando daqui do Sul maravilha para o meu querido Rio de Janeiro, passaram a frequentar a trilha sonora de minha memória afetiva e contribuem para que meu coração, orgulhoso de ser quem é, chore um pouquinho numa mistura de tristeza e felicidade. Eis a beleza da experiência humana, a possibilidade de reconstruir nosso estar no mundo por meios inusitados.

Sábado desses, no meio da tarde, tempo aberto, peguei a cadeira de praia, tirei a camiseta e sentei na calçada em frente ao prédio. O sol, radiante, queimava o meu rosto, o suor escorrendo pelas costas e a playlist do Spotify animando a festa. Festa na laje. Só faltaram os óculos escuros. Atravessei a rua e comprei umas cervejinhas na pequena mercearia em frente. Fiquei vendo a vida passar, e os passantes que passavam por mim olhavam, entre a incredulidade, a curiosidade e o divertimento, aquela cena tipicamente suburbana carioca. Houve quem meneasse a cabeça, em cumprimento, como se estivéssemos numa cidade do interior. 

Embora o estado do Paraná venha sendo povoado (sim, no gerúndio), ao longo do tempo, por imigrantes de tudo quanto é canto - sem falar, claro, nos povos originários, especialmente os Mbya Guarani, que, até onde sei, não convidaram ninguém para a festa - há um pessoal que insiste em "embranquecer" o que já nasceu colorido e misturado. É a galera separatista xucra que usa adesivo de carro com a imagem da região sul e a frase "O Sul é meu país". Por sorte, fomos acolhidos por curitibanos - da gema ou adotivos - tão bacanas que o sentimento de estrangeirice está mais para pé de página do que para capítulo final.

Curitiba também é minha.







Comentários

Raymundo de Lima disse…
Marcelo. Esta logopropaganda política "O sul é o meu país" antes de Bolsonaro, não escondia sua ideologia nazi-fascista. Com o desgoverno bozofrenico, seus adeptos, se enrolam de verde-amarelo, para pedir ditadura militar, ser contra o STF, etc. Não podemos fingir de saber que o Paraná é o segundo Estado com maior número de grupos neonazistas atuantes nas redes sociais, clubes, motociclistas barulhentos. O primeiro é Santa Catarina. Abraço.
Unknown disse…
Que bom que Curitiba agora também é de vcs, mas com o Rio no coração.