O colega de trabalho da Renata avisou que estava vindo do Rio
de Janeiro e que traria alguns pacotes do Biscoito Globo, o icônico biscoito de
polvilho que povoa o imaginário carioca há décadas, patrimônio material da
cidade, parte indelével de sua identidade, devorado com bons goles de Mate Leão
nas escaldantes areias das praias. O pacote verde amarelo, salgado; o vermelho,
doce. O colega também prometia trazer alguns copos de Guaravita, refresco industrializado
dulcíssimo que o Miguel adora. Tão logo chegou em casa, Renata abriu um dos
pacotes, salgado. Neste instante, o barulho do biscoito se rompendo na mordida,
crocante, a fez chorar.
Num domingo recente, fomos a um restaurante perto de casa.
Pedi um despretensioso pedaço de frango assado com legumes. A pele da sobrecoxa
estava levemente tostada, desprendendo-se da carne suculenta que vinha por
baixo. Coloquei-a na boca de uma só garfada e, imediatamente, meus olhos se
marejaram. O sabor me catapultou para a cozinha da minha infância, onde minha
mãe preparava, eventualmente, torresmos com a pela do frango, colocados sobre
um papel toalha no prato posto na mesa quadrangular de fórmica azul, tira-gosto
antes da refeição propriamente dita.
Quando estive com o Miguel no Rio de Janeiro, no início deste
ano, seu único pedido foi revisitar a antiga lanchonete Copa 74, vizinha ao
edifício onde moramos por felizes dez anos, em frente à Praça São Salvador, na
esquina da Rua São Salvador coma Rua Senador Correia, quase em frente à
barbearia do Ademar. Na Copa 74 o Miguel era feliz comendo o “joelho” (que os
niteroienses chamam de “italiano”), um salgado recheado de queijo e presunto,
acompanhado do refresco de caju.
Depois de devorar a iguaria de sua infância (sim, ele já é um
adolescente de 13 anos), levei-o ao mercado do outro lado da praça, à procura
do Skinny, um salgadinho de milho difícil de encontrar em Curitiba. Compramos
um pacote e fomos comê-lo sentados na mureta do parquinho das crianças pequenas
- onde ele se esbaldou incontáveis vezes no balanço e na gangorra e subindo nas
árvores tal qual um caxinguelê -, antes de seguirmos para a Galeria Condor, no
Largo do Machado, ali perto, onde nos esperavam as esfihas de carne e verduras e,
novamente, o refresco de caju da Rotisseria Sírio-Libanesa, onde batíamos ponto
ao menos uma vez na semana. As esfihas são, sempre, a encomenda preferida de
quem vem de lá pra cá. Sem falar nas balas Juquinha...
Sentados à mesa durante a comemoração de Rosh Hashaná, o Ano
Novo judaico, aqui em Curitiba, há alguns anos, mordi um pedaço de Challah, o
pão trançado típico. Novamente os olhos marejados, desta vez porque fui levado
à casa dos meus avós maternos que recebiam a família para as festividades.
Ajudaram na ativação da memória gustativa os biscoitinhos de coco da vovó Lula
e que Renata aprendeu a fazer com maestria.
Na Feira do Largo da Ordem, nos finais de semana, há uma
barraca que vende melado de cana-de-açúcar. É lindo ver o rapaz despejando-o
nos potes de plástico, com sua textura viscosa, o acobreado brilhante pelos
raios de sol. A Renata diz que o melado é muito mais gostoso que o mel, e esta
preferência, por mais verdade que seja em termos estritamente aromáticos, para
ela, sem dúvida alguma está influenciada por sua memória afetiva familiar. Sua
avó materna, nordestina de quatro costados, guardava o melado – que gostava de
comer misturado com farinha - num pote de barro, encima da geladeira.
No terreno da ficção, uma de minhas cenas favoritas de “O
Poderoso Chefão” é aquela em que, na cozinha, um dos mafiosos ensina Michael
Corleone a preparar o melhor molho de tomate possível para acompanhar as
almôndegas. E, em “Adeus, Lênin”, a aventura do filho, obrigado a reproduzir
uma realidade fantástica em busca das garrafas de refresco favorito de sua mãe,
entusiasta do comunismo da Alemanha Oriental que, um belo dia, despertou do
coma já com o muro de Berlim destruído.
Virou senso comum dizer que somos aquilo que comemos, embora
não deixe de ser verdade e não é nada banal reconhecer sua importância na forma
como interpretamos e vivemos a vida. A comida – que é diferente do alimento –,
em seu sentido antropológico, está embebida de afeto, de memória, de sentimento
de pertencimento. A comida nos ajuda a interpretar nosso lugar no mundo,
reforça e atualiza relações, nos alegra, nos faz chorar e nos dá prazer.
Soube que o Cervantes, ali em Copacabana, vai reabrir. O
sanduíche de patê com abacaxi que me espere...
Comentários