Sou um homem de hábitos. Aos sábados, levanto-me cedo e vou
correr, alguns quilômetros a mais do que costume correr durante os dias de
semana. Volto para casa, tomo um banho e saio novamente, agora para a feira
semanal na rua de trás. Depois de guardar na geladeira as abobrinhas,
berinjelas, espinafres, batatas, cebolas e cenouras - além dos limões da
limonada do meu filho -, já por volta de onze da manhã, visto o “traje de
gala”, que é como uma amiga de minha esposa (ela não gosta de ser chamada de
“companheira”) se refere à camiseta do Flamengo, e caminho até um bar que
conheci não faz muito tempo. Neste bar, como em muitos outros de Curitiba, há
“assados” nos finais de semana, pedaços de costela bovina, sobrecoxas e
linguiças tenras e saborosas podem ser levadas para casa ou degustadas ali
mesmo, que é o meu caso.
Neste último final de semana, não foi diferente. Enquanto
esperava Renata, tomava uma cerveja bem gelada e tratava de terminar mais um
delicioso livro do Eduardo Galeano, “Cerrado por fútbol”. Ela chegou por volta
do meio-dia, a fome dava sinais de vida e, como de costume, peço uma sobrecoxa
e mais uma gelada. Aproveitamos o sol, raro nesta época do ano e, depois de
quatro garrafas e a trilha sonora de funk raiz carioca, decidimos voltar.
Precisávamos descansar um pouco antes de partirmos rumo ao samba de roda em
outro bar, desta vez, no bairro Cajuru.
Subíamos a Rua Itupava, já próximos de casa, que é próxima do
estádio Couto Pereira, “casa” do Coritiba e que tem abrigado jogos do Grêmio de
Porto Alegre - por conta da tragédia climática que se abateu sobre a capital
gaúcha e deixou impraticável o seu gramado – quando um “flanelinha”, do outro
lado da rua, nos adverte que já havia nas imediações muitos torcedores
gremistas e “colorados”. Sim, naquela tarde, se jogaria o clássico gaúcho,
Grêmio e Internacional, e eu, vestindo a camiseta do Flamengo, correndo risco
de morte, segundo o “flanelinha”, deveria ser prudente. Entre a incredulidade a
e estupefação consigo, simplesmente, exclamar “Mas eu moro aqui!”. Deveria ir
pelado pra casa? E, pensando bem, mesmo não morando aqui, estaria proibido de
trajar a camiseta que me dê na veneta? Enfim, seguimos nosso rumo e chegamos ao
destino, sãos e salvos.
Não foi a primeira vez que recebo um bom conselho samaritano.
Tempos atrás, num domingo à tarde, decidi ir à padaria e, abrindo o portão da
portaria, sou advertido por uma jovem torcedora do Coritiba, que saía do
estádio um pouco antes do final de mais uma partida do disputadíssimo campeonato
local, que seria melhor que eu trocasse a camiseta que, pecado dos pecados, era
de cor vermelha. Sim, a cor vermelha significa, para a torcida do Coritiba, o
mesmo que o alho para o vampiro ou a reforma agrária para o agronegócio. Embora
surpreso e, por que não, revoltado – nunca havia passado por esta situação no
Rio de Janeiro, onde, realmente, há uma rivalidade clubística digna do nome e
que, compreensível ainda que não justificável, poderia gerar este tipo de
conselho - e porque “seguro morreu de velho”, decido trocar a camiseta por
outra decente e respeitosa aos hábitos locais.
Ontem, o Flamengo jogou com o Fluminense, o clássico mais
charmoso do país imortalizado nas crônicas do tricolor Nelson Rodrigues. Fui
assisti-lo num bar do bairro Cristo Rei, tradicional local de encontro de
muitos outros rubro-negros. Para além da solidariedade clubística e o
inevitável sentimento de pertencimento através das cores do “manto sagrado” –
que é outro nome dado ao “traje de gala” – e dos cantos mais conhecidos
entoados no Maracanã, a sensação de estar em casa, de ser acolhido e cuidado,
veio também do sotaque chiado característico nosso, carioca, nos pratos com
linguiças e carnes circulando, livre e gratuitamente, entre os presentes e as
sandálias havaianas nos pés de vários de nós, inclusive eu. Para nossa alegria,
o Flamengo venceu com um gol no final do jogo, e eu voltei feliz.
No caminho de volta, para no mercado. Nosso filho me havia
pedido cachorro-quente para o lanche, precisava de salsichas e pão francês.
Aproveito para comprar um pouco de carne moída, porque a minha fome era de
hambúrguer, e mais duas latinhas de cerveja, para fechar o final de semana. Ao
atravessar a rua, um carro passa por mim buzinando e, ao olhar para trás,
recebo uma chuva de impropérios e “dedos do meio” de um dos seus ocupantes, com
a camisa do Atlético Paranaense, que havia empatado mais cedo com o
Corinthians, em seu próprio estádio. Também não foi a primeira que torcedores
do Atlético Paranaense me xingam na rua, e isto comprova que a camisa
rubro-negra não é, por si só, símbolo de harmonia e união. Não vale a máxima de
que “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”, no caso, o inimigo incorporado às
cores verde e branca do Coritiba.
Meus pais, que moram no Rio de Janeiro e assistem,
eventualmente, os jogos do Flamengo pela televisão, já me manifestaram sua
surpresa com as expressões faciais e verbais da torcida atleticana, em seu
próprio estádio, quando a equipe enfrenta o rubro-negro carioca. Semblantes de
ódio e racismo nas palavras e xingamentos direcionados aos jogadores
adversários. É explícito o rancor e o ressentimento.
Em relação ao aspecto meramente futebolístico, acredito que, embora nos últimos anos o Atlético Paranaense tenha assumido certo protagonismo no cenário nacional, seu papel ainda é de coadjuvante se comparado aos times do eixo Rio-São Paulo, sobretudo no que diz respeito à visibilidade midiática. Falta o reconhecimento dos donos da bola, que o relegam a uma força regional, provinciana. O que dizer, então, do Coritiba, que sequer consegue manter-se por muito tempo na primeira divisão do campeonato nacional e vive de glórias passadas, como o título brasileiro de 1985 conquistado, ironia das ironias, em pleno Maracanã diante do brioso Bangu de Castor de Andrade.
O rancor e o ressentimento, o incômodo com o “diferente”, a
incapacidade de lidar com o “outro” extrapolam o campo de futebol, refletindo
um provincianismo tacanho, cafona, tosco – como todo provincianismo que se
preze, claro.
Em Curitiba, a xenofobia dirigida aos nordestinos – inscrita nos
muros da cidade – vem acompanhada da ânsia separatista com tempero racista
incorporada no lema “O Sul é meu país”. A população negra da cidade é invisível
e marginalizada aos olhos do poder público, que reafirma a herança cultural
europeia branca, sobretudo polonesa, ucraniana e italiana. Quem dera nevasse,
sonham alguns.
Curitiba é esquizofrênica, também. O provincianismo dos
nativos de pura cepa, que fomenta um sentimento de superioridade aos “de fora”,
não impede que aflore o famoso “complexo de vira-latas”. A abertura de uma loja
do Starbucks ganha grande destaque na imprensa local, assim como uma nova rota
internacional saindo do Aeroporto Afonso Pena. E olha que nem é para Miami...
E também é triste. A indumentária tradicional dos “nativos”
resume-se a tons escuros e ao indefectível boné, no caso dos homens, mesmo em
dias nublados e chuvosos. Muitas padarias não abrem aos domingos, e os bares,
também aos domingos, comumente só abrem as portas depois das três da tarde. A
beleza de seus parques e praças e a limpeza das ruas contrastam com o vazio de
pessoas no espaço público em dias de sol. A famosa “introversão” do curitibano
é um eufemismo para a sua falta de traquejo nas relações sociais. Têm medo da
própria sombra.
A camiseta do meu clube de paixão representa não somente a
paixão clubística, mas também a carioquice, a memória de quem eu sou, de onde
venho, que é a forma de resistir à hostilidade e à tristeza que nos rodeia.
Uma vez Flamengo, sempre carioca.
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