Parênteses de mim mesmo

 

Não chovia naquele domingo pela manhã. Troco rapidamente de roupa e vou correr, meu corpo gritava há vários dias, cansado de esbravejar em direção ao céu cinzento que insistia em despejar água sobre nossas cabeças. No trajeto até o Parque São Lourenço, a paisagem é desértica. Eu era o protagonista solitário daquele filme, acompanhado das ruas impecável e civilizadamente limpas e das árvores frondosas que me saudavam das calçadas. No Parque, os gansos e capivaras me deram bom dia, à falta de humanos. Ao longo dos cerca de quinze quilômetros de suadouro, a tristeza da cidade, a sensação melancólica de não poder compartilhar a vivência da bela paisagem com outros corredores matinais, o prazer de receber na cara os tímidos raios de sol que desafiavam a carranca das nuvens que vinham lá do sul, era atenuada pela trilha sonora dos auriculares, samba da melhor qualidade.

Os gatos me esperavam na porta de casa, mal acostumados a tomar leite de pires logo cedo, e eu estava atrasadíssimo. Abro o chuveiro e a água quente me conforta do frio emocional que acabo de experimentar, mas o acalanto do corpo não é suficiente. A melancolia de sentir-se “fora do lugar” é mais forte, e choro. Jorge Aragão, ao fundo, tenta me afagar, e eu lhe agradeço a intenção.

Em dias de sol, colocamos cadeiras de praia na calçada do outro lado da rua. Compramos algumas cervejas e lemos o livro da vez. Percebemos olhares curiosos dos escassos pedestres que se aventuram pelas ruas curitibanas, alguns nos saúdam como se estivéssemos numa cidade do interior, onde todos se conhecem e o cumprimento representa o reconhecimento do outro como parte da comunidade, espécie de solidariedade provinciana. Certa vez, uma gaúcha nos veio parabenizar por “quebrar paradigmas” locais, achamos graça. Outro, fazendo troça, “advertiu-me” que o período de “estacionamento” era de, apenas, quinze minutos. Hábitos forasteiros subvertendo e “sujando” a ordem local.

Naquele mesmo domingo da corrida, não pude comprar o pão francês na padaria da esquina, que não abre. Tampouco o bar ali do lado, e muitos outros apenas no meio da tarde. O espaço público como lugar de encontro com o outro, de sociabilidade, de compartilhar experiências e vivências, é estranho aos nativos, ou perigoso. Sem camisa e de chinelos, sem vergonha do meu corpo e do alheio, ouço um motorista me perguntar, em tom jocoso, se estava indo à praia. Surpreendido, tenho presença de espírito para responder-lhe que sim, apontando para o norte, e que a praia estava a cerca de oitocentos quilômetros dali, na zona sul do Rio de Janeiro. Ali era a minha “praia”.

A paixão clubística, flamenguista de quatro costados, também já me fez sentir nadando em águas revoltas, ofendido em mais de uma oportunidade por torcedores do Athlético Paranaense enquanto caminhava tranquilamente perto de casa. Também já fui advertido por uma simpática torcedora do Coritiba a não usar camisetas vermelhas em dias de jogo perto do estádio – moramos bem próximo dele.

No Rio de Janeiro, minha identidade carioca nunca foi um problema ou, se não um problema, um tópico de reflexão importante que compartilhava com a psicanalista, era pura e simplesmente parte da paisagem, embalado pelo chiado do sotaque e o calor indefectível. Em Curitiba, por outro lado, sou confrontado frequentemente com a minha condição de “estrangeiro”, seja interpelado por quem se vê como “nativo”, seja por mim mesmo, pela minha vivência das diferenças de visão de mundo e suas representações simbólicas incorporadas nos hábitos e comportamentos “normais” de quem se vê “dono de pedaço”.

Sempre me orgulhei de minha “estrangeirice”, de ser um “judeu errante” camaleônico, adaptável a qualquer situação, um estrangeiro de tudo e, necessariamente, um nativo de tudo. Descobri, contudo, que, por mais que nos adaptemos e acostumemos a tudo, sentir-se em casa – como lugar simbólico do afeto e do aconchego – exige mais do que boa vontade e esforço emocional. E eu, admito, cansei desse esforço.

Só não me peçam pra usar boné em dias chuvosos...



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