Futebol de várzea

Na década de noventa, o Paraná Clube era uma pedra no sapato do Flamengo. Seu estádio, o Durival de Britto e Silva, mais conhecido como “estádio da Vila Capanema”, recebeu dois jogos da Copa do Mundo de 1950. Sempre que vou ou volto do aeroporto, ou tenho algum programa lá pela zona sul de Curitiba, passo por ele. É um clássico arquitetônico, nada a ver com as malfadadas arenas horrorosas que não fedem nem cheiram, sem identidade, sem história, sem memória, sem a “sujeira” das marcas do tempo. Ah, que saudades do Maracanã e seus “geraldinos”... 

Por razões que desconheço - embora imagine que tenha a ver com má gestão – já há vários anos o Paraná Clube simplesmente desapareceu do cenário futebolístico nacional e estadual. Quer dizer, até poucas semanas atrás, quando sua torcida apaixonada teve o prazer de vê-lo ascender à primeira divisão do campeonato estadual, primeiro e importante passo para ser recebido, num futuro que esperam não ser tão distante assim, de braços abertos na elite do futebol brasileiro.

Pelo regulamento, os dois primeiros colocados da segunda divisão ascendem à primeira e, na semifinal, a equipe enfrentou o Patriotas (argh!), do município vizinho de Campo Largo. No primeiro jogo, fora de casa, um empate insosso sem gols. No jogo de volta, a disputa aconteceu no estádio Couto Pereira, cedido pelo Coritiba. Naquele domingo cinzento e friorento, enquanto mantinha a rotina de corrida nas ruas próximas de casa, acompanhava a chegada da torcida tricolor – o uniforme do Paraná é branco, vermelho e azul. O jogo estava marcado para às onze da manhã.

Podendo ser testemunha de um evento histórico, liguei para uma conhecida, torcedora do Paraná Clube e que iria ao estádio com seu pai, na esperança de conseguir uma entrada. Na mão de um cambista, ela me consegue uma “cadeira” no setor antigo por cinquenta e cinco reais. Encontro-os na entrada principal do estádio que, embora não fique lotado, recebe um grande público. Nas arquibancadas, faixas e mais faixas das torcidas organizadas e, insolitamente, cânticos com ofensas ao Coritiba, o anfitrião que lhe abriu as portas. Há coisas no futebol que é melhor não tentar entender.

Sentamos na parte mais alta do setor. Atrás de nós, um senhor de boina, certamente maior de setenta anos, com um celular colado ao ouvido, versão pós-moderna do radinho de pilha. Sinto, ao meu redor, uma atmosfera de felicidade e orgulho clubístico, na certeza de que, em menos de duas horas, o clube do coração voltará a ocupar o lugar de onde nunca deveria ter saído. Pelo menos, quando se trata do campeonato local. O pai da minha conhecida é uma figuraça, não consegue ficar quieto, traz cerveja e faz piada.

O primeiro tempo é sofrível, e em boa parte dele me distraio com o movimento das arquibancadas e seus torcedores. Ouço versões de “Fio maravilha”, do Jorge Ben Jor, e “O Campeão (Domingo vou ao Maracanã)”, do Neguinho da Beija-Flor, adaptadas ao gosto paranista, e não me importo, ao contrário, sinto orgulho em torcer pelo time que as inspirou. 

Até o primeiro gol do Paraná Clube – que, no final, acabou vencendo por três a zero, ascendendo à elite (!) do futebol local -, nos estertores do primeiro tempo, em vários momentos os torcedores ofenderam o árbitro, os próprios jogadores do seu time, mas, principalmente, os jogadores adversários. E eu, como espectador curioso e desinteressado, um observador participante – para usarmos uma linguagem antropológica – achei curiosíssimas as ofensas.

Apesar da equipe do Patriotas mandar seus jogos no município de Campo Largo, na região metropolitana de Curitiba, ouvi um torcedor paranista, irritadíssimo, gritar a plenos pulmões “seus caipiras!”. Outro, saiu do senso comum dos palavrões isolados e mandou um “volta para a várzea, seu merda!”, com carregadíssimo sotaque puxado na letra “r”.

Então é isso. Nossas identidades não se expressam no vácuo, são construídas na relação com o “outro”, depende do contexto, do momento da interação entre os sujeitos. Aquilo que define determinada identidade, a maneira que nos vemos e queremos ser vistos pelos demais, a forma como nos olhamos no espelho, depende menos das características objetivas que nos representa – que, afinal, podem mudar ao longo do tempo - e mais pela simples existência de uma fronteira que é traçada no momento do confronto com o “diferente”.

É por isso que o torcedor do Paraná Clube se vê no direito legítimo de chamar o jogador adversário de “caipira” porque, na relação entre este torcedor, morador de Curitiba, e o jogador, que representa um time da região metropolitana, o primeiro é mais “urbano” e, quem sabe, “civilizado” que o segundo. O mesmo raciocínio podemos aplicar ao desejo de enviar os adversários de volta à “várzea”. Mal sabe ele, por outro lado, e seguindo na mesma toada - a ideia de identidade relacional -, que quando um carioca torcedor do Flamengo ouve um curitibano torcedor do Paraná Clube puxar o “r”, é possível que venha em sua cabeça a mesmíssima palavra “caipira” e o estereótipo associado a ela.

Afinal de contas, quem com ferro fere...


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